Foto: portal G37 |
Se no passado, títulos como os de barão, conde ou coronel outorgavam condição superior diante das demais pessoas, vemos nos dias atuais a busca de muitos por uma denominação de destaque, mesmo que o detentor do “título” não tenha necessariamente a formação que faça jus ao que muitos consideram inclusive como prenome. Tem sido frequentes notícias relacionadas a autoridades públicas que se envolvem em confusões com agentes da lei e no geral, as queixas são as mesmas. Ainda que diretamente envolvidos em algum tipo de infração, tais figuras públicas de maior status se sentem profundamente ofendidas por supostos atos de desrespeito a seu status, ofendendo por sua vez policiais, agentes de trânsito ou algum outro servidor público em pleno exercício de suas funções, logicamente em situação de suposta subalternidade.
Em matéria publicada no site
Gazeta do Povo, publicada no dia 18 de julho, lemos que o desembargador
Eduardo Almeida Prado Rocha de Siqueira, do Tribunal de Justiça de São Paulo,
chamou de ‘analfabeto’ um guarda municipal que lhe pediu que colocasse a
máscara exigida por decreto da prefeitura para locais públicos durante a
pandemia do coronavírus. Já no dia 23 do mesmo mês, em matéria publicada no
site G1, o citado desembargador, por conta da repercussão negativa do caso,
publica a seguinte retratação:
"Minha
atitude teve como pano de fundo uma profunda indignação com a série de
confusões normativas que têm surgido durante a pandemia – como a edição de
decretos municipais que contrariam a legislação federal – e às inúmeras
abordagens ilegais e agressivas que recebi antes, que sem dúvida exaltam os
ânimos. Nada disso, porém, justifica os excessos ocorridos, dos quais me
arrependo. O guarda municipal só estava cumprindo ordens e, na abordagem, atuou
de maneira irrepreensível. Estendo as desculpas a sua família e a todas as
pessoas que se sentiram ofendidas"
Desembargador menospreza agente de segurança |
De fato, o judiciário tem se
configurado como estrutura de poder, inclusive político. Segundo Frederico
Noronha, em seu trabalho “A Nobreza Togada”, os membros do judiciário que,
conjuntamente à função de magistrado, exercem maior disputa de espaço político
e social, considerando principalmente sua faixa de renda como fator que
legitima sua superioridade. Ou seja, o juiz, desembargador ou outro entre seus congêneres
pertencem a uma camada social apartada dos demais cidadãos, não apenas pelo
fato de pertencer a um dos três poderes da República, mas também e muito
principalmente pelo poder econômico que ostentam. Exatamente por esse motivo
temos também vasto repertório que exemplifica a associação direta entre a
autoridade do juiz e seu poder financeiro.
Em setembro de 2019 foi
amplamente divulgado o caso do procurador da Justiça de Minas Gerais Leonardo
Azeredo dos Santos, que se queixou do que o mesmo considera “baixo salário”, ao
ponderar que é muito difícil criar um filho com um salário de 24 mil reais por
mês. Em matéria publicada no site do Correio brasiliense, o procurador comenta,
em um áudio postado em grupo de WhatsApp:
“Estou fazendo a minha parte. Estou
deixando de gastar R$ 20 mil de cartão de crédito e estou passando a gastar R$
8 (mil), para poder viver com os meus R$ 24 mil. Agora, eu e vários outros já
estamos vivendo à base de comprimidos, à base de antidepressivo. Estou falando
desse jeito aqui com dois comprimidos sertralina por dia, tomo dois
ansiolíticos por dia e ainda estou falando desse jeito. Imagine se eu não
tomasse? Ia ser pior que o ;Ronaldinho;. Vamos ficar desse jeito? Nós vamos
baixar mais a crista? Nós vamos virar pedinte, quase?”
Queixa pelo Watssap: procurador vive no "miserê" |
O
“doutor fake” na nova ordem política
O mês de outubro de 2020
ficou marcado por mais um entre tantos casos de figuras ligadas ao presidente
Bolsonaro, cujo currículo é, pelo menos, duvidoso. Kassio Nunes Marques, desembargador
do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF 1), foi indicado pelo atual
presidente a ocupar a vaga do Ministro Celso de Mello. O que vemos na verdade é
que a indicação de Marques é a pedido do Presidente do Senado Davi alcolumbre e
atende a ideia de Bolsonaro, ao afirmar que pensa em ter um membro do STF que
“tome Tubaina comigo”. O fato é que o
jurista ocupou as matérias jornalísticas por citar em seu currículo uma pós
graduação na Universidad de La Coruña (Espanha), fato legado por aquela
instituição de ensino. No entanto essa está longe de ser um fato isolado.
Uma das figuras
inegavelmente mais importantes e influentes do governo Bolsonaro é a Damaris
Alves, pastora e figura de livre trânsito nos gabinetes do Congresso Nacional. Em
janeiro de 2019 o site Folha UOL publicou que “num de seus discursos mais famosos, ao menos até virar Ministra da
Mulher, Familia e Direitos Humanos, Damares Alves se apresentava à plateia: não
estão diante apenas de uma pastora, mas de uma advogada que é também mestre em
Educação e em Direito Constitucional e Direito da Família”. Já em matéria do mesmo site em 31 de janeiro,
a ministra pastora afirma que “Diferentemente
do mestre secular, que precisa ir a uma universidade para fazer mestrado, nas
igrejas cristãs é chamado mestre todo aquele que é dedicado ao ensino bíblico”.
Mentir no currículo então tem levado pessoas a passar de uma condição de auto
titulação, a uma chancela aceita pela em meios sociais onde não se imaginava
que seria possível conceber tal prática. Não fosse o olhar atento da imprensa e
de desafetos políticos, municiados de ferramentas como as redes sociais, tais
títulos fake passariam batido.
Damaris: título dado por Deus. foto: G37 |
No que se refere ao títulos emblemáticos na busca por um espaço na vida pública, uma candidatura simbólica nessas eleições de 2020 é a do Pastor Sargento Isidoro (O Doido). Pai de sete filhos e diretor de um centro de recuperação para dependentes químicos, ele que é deputado federal com mais de 130 mil votos pelo estado da Bahia, O Doido se candidata agora a prefeito de Salvador pelo partido Avante, apoiado pelo enfrentamento ao preço do gás de cozinha. Com um discurso fundamentalista e se colocando como mediador entre o tráfico de drogas e o poder público, Isidoro se notabilizou por sua criativa forma de enfrentamento ao fundamentalismo bolsonarista. Segundo ele mesmo, “pra conversar com doido, só outro doido”.
Pastor Sargento Isidoro, "O Doido" foto:Agência Lupa |
Pastor,
título de nobreza entre os de baixa renda
A partir da Abertura
Política nos anos 80 foi significativa a ampliação de espaços de representação
social, sobretudo na base da sociedade. Na região da Baixada Fluminense em
particular, vimos a consolidação das associações de bairro, além das
Comunidades Eclesiais de Base da Igreja Católica, de forte penetração social.
Essas últimas discutiam questões fundamentais tais como direitos da criança, acesso
a terra, saúde pública e até atenção a população carcerária. Contudo, na década
seguinte o número de parlamentares e gestores públicos de esquerda se amplia,
levando para dentro de seus gabinetes as principais lideranças de base. A
justificativa de parte a parte era a de potencializar a ação política na
estrutura estatal, fragilizando, no entanto, as estruturas da discussão “na
ponta”, a população mais carente. Ou seja, a primeira década dos anos 2000
chega, refletindo o triste fato de que sindicatos, associações de moradores,
grêmios estudantis, entre outras instâncias de representação social perderam o
“sotaque” das bases, deixando um buraco no que se refere a escuta de quem mais
carece de políticas públicas.
Pastor Everaldo, preso por fraude |
Na verdade, como todos nós aprendemos nas
primeiras aulas de Ciências, não há espaço vazio na natureza e, no que se
refere a nós, seres humanos e brasileiros, é possível notar que é a partir da
camada menos abastada da sociedade que emergem soluções a seu modo. Nesse caso,
a instância no qual se apoia a autoridade dos novos líderes locais é poder de
Deus. De forma invisível tanto à grande mídia quanto aos formuladores políticas
públicas, as igrejas neopentecostais espalhadas pelos bairros pobres e
periféricos vêm dando convenientes respostas à população. Temos dados que
mostram que na primeira década dos anos 2000, as lideranças religiosas vêm intervindo
em áreas como cultura, política e mídias (IBGE 2010).
A partir do período ao qual
a pesquisa do IBGE se dedicou, coincide o aumento no número de lideres
religiosos constando entre os principais articuladores de políticas locais. Com
o gradativo esvaziamento das estruturas de amparo social, baixo índice de
propostas governamentais às politicas públicas e através da diminuição de
recursos financeiros destinados a assistência social, cultura e saúde, por
exemplo, as lideranças locais têm apontado para as igrejas como espaço de
amparo comunitário e espiritual. A partir dessa lógica, pastores e missionários
neopentecostais vêm disputando protagonismo não apenas nas instâncias de
influência eclesiástica, mas também nos espaços de representação política. Ou
seja, se auto intitular pastor, bispo, missionário ou até mesmo “Irmão Fulano”,
produz certo tipo de elevação no status
individual. É possível notar que tais títulos são incorporados por seu usuários
como nomes próprios, carecendo portanto do respeito e respaldo devido, segundo
entendimento dos mesmo, algo que seu meio social absorve com naturalidade.
Em matéria publicada no dia
01 de outubro desse anos pelo site G1, 8,7 mil dos que pleiteiam cargos
eletivos adotaram títulos religiosos como forma de identificação de suas
candidaturas.
” Entre os títulos, o mais utilizado é o
de pastor/pastora, com mais de 51% dos casos (4.426), seguido por irmão/irmã,
com 41% (3.561). Como concentram a maior parte das candidaturas, os postulantes
ao cargo de vereador apresentam também o maior número de títulos religiosos. Na
sequência, aparecem os candidatos a vice-prefeito e, por último, os candidatos
a prefeito.”
Segundo matéria do site
Congresso em foco, publicada em 15 de setembro, é possível ter uma ideia mais
clara quanto a ocupação de cargos públicos por evangélicos: A bancada evangélica no
Congresso Nacional está cada vez mais numerosa e, com isso, busca mais poder e
cargos relevantes. Em 1994, eram 21 deputados federais evangélicos, hoje já são
105 deputados e 15 senadores, o que equivale a 20% do Congresso. Uma
breve busca no Google utilizando o termo “Deputado Pastor”, resulta em mais de
85 mil resultados, observando logicamente as redundâncias de resultado, sem
considerar, porém o uso do termo “Prefeito Pastor” e “vereador Pastor”, o que
faria saltar significativamente esses números.
No artigo “Nobreza e principais da terra — América
Portuguesa, séculos XVII e XVIII”, do professor Ronald Raminelli (2018), percebemos
um aspectos muito peculiares quanto a reivindicação de um status privilegiado
na sociedade. Segundo o professor Raminelli, a nobreza por nascimento era algo
raro e pouco duradouro no Brasil. Já no período pesquisado era possível notar
que o acúmulo de patrimônio, ocupação de cargo público ou patente militar eram
os fatores que garantiam preponderância social em relação aos demais. O que o
autor chama de “nobreza política”, tem haver com o apoio ao “Rei”, por parte
dessa figura que ascende socialmente que, em contrapartida, tem sua o olhar
complacente e abençoado do grande senhor. Não será assim também nos dias de
hoje?
Leia mais em:
Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S2237-101X2018000200217&script=sci_arttext
https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/01/sem-diploma-damares-ja-se-apresentou-como-mestre-em-educacao-e-direito.shtml;
“A
nobreza togada: as elites jurídicas e a política da Justiça no Brasil”
disponível em: https://doi.org/10.11606/T.8.2010.tde-08102010-143600