segunda-feira, 23 de maio de 2022

QUE LUZ É ESSA NO FIM DO TÚNEL? A luta por políticas culturais e o acesso a renda em tempos de declínio pandêmico

 


 Com o veto presidencial às Leis Paulo Gustavo e Aldir Blanc 2, agravado em relação as incertezas quanto a retomada da economia, me vem à mente uma frase que ouvi muito na adolescência. “Quando ouvir falar em ‘luz no fim do túnel’, cuidado. Pode ser um trem vindo na tua direção”. Ainda não é possível também identificar o que representa a luz no fim do túnel da Covid-19, tanto no contexto global quanto em nosso país, que passou da média diária de aproximadamente 80 mil casos para pouco mais de 13 mil entre maio de 2021 e maio deste ano, com números de hospitalização e mortalidade que já não são mais alarmantes, ainda que preocupantes de igual modo. O mitológico número que atingimos, de 666 mil mortes por Covid-19 no Brasil, nos dá uma noção aproximada do que cada família passou nesses últimos dois anos de medo, perdas e sofrimento, período esse que nos descolou da ideia natural de alegria e festa, sobretudo se levamos a sério o que foi a necessidade de isolamento social.  Nesse sentido, poucas coisas foram tão difíceis e traumáticas quanto se afastar dos espaços de expressão artística naquele período do qual nunca esqueceremos. Se foi duro para todas as idades e camadas sociais estar distante fisicamente das expressões artísticas, pensemos então no tamanha da perda sofrida por produtores, técnicos e artistas em geral, que contribuem para nosso estado de bem estar e felicidade. Nesse sentido a abordagem aqui consiste em traçar uma linha de raciocínio que descreva a condição de fragilidade financeira que ainda assombra toda cadeia produtiva da cultura, bem como as ações que surgiram nesses dois anos, tanto por parte da sociedade civil quanto no campo das políticas públicas com foco na cultura em nosso país. 


Com a adoção da estratégia de isolamento social, gradativamente as casas noturnas, teatros e demais espaços de fruição de bens culturais entenderam que o estado de Pandemia declarado pela OMS em 11 de março de 2020 deveria ser acatado. Com a vertiginosa queda na renda, no entanto, muitos artistas literalmente se desesperaram, considerando que para essa categoria de trabalhadores o público sempre foi fator fundamental no que diz respeito a geração de renda. O músico e produtor mineiro Rodrigo Unno, diante da situação difícil com a qual se deparou naquele momento, optou por uma estratégia diferenciada que surgia, que foram as lives, através das quais os shows e demais espetáculos poderiam ser transmitidos via plataformas digitais na internet. “Era investir ou fechar o estúdio”, afirmou Unno em entrevista ao canal da UFMG no Youtube, diante do impasse no qual vivia naquele momento. A partir de abril daquele ano então, boa parte dos produtores passaram a direcionar os recursos que lhes restavam para estruturas audiovisuais como filmadoras, refletores entre outros equipamentos específicos de produção de vídeo, como tentativa de diminuir os impactos do isolamento social, possibilitando também uma aproximação entre artista e público. 


Foi no dia 28 de março de 2020 que a produção do cantor sertanejo Gustavo Lima abriu as porteiras da internet para um show ao vivo, que se transformaria rapidamente em alternativa para o público brasileiro carente de entretenimento. Em cinco horas de show o cantor fez uma performance em um formato indireto, com o qual muitos outros artísticas precisariam se acostumar. As lives se tornaram em boa medida naquele momento uma saída para artistas, sobretudo músicos que, por sua vez, mobilizavam uma equipe técnica grande em muitos casos. No dia 08 de abril de 2020 se deu o que foi considerado o ponto alto dessa tendência no mundo. O show da cantora goiana Marilia Mendonça transmitido ao vivo, contou com mais de 3,3 milhões de visualizações e foi considerado o mais assistido simultaneamente no mundo, contando com maquiadores, iluminador, eletricista, entre outros profissionais além de seus músicos. A principal virtude desses shows transmitidos via internet foi a visibilidade que eventuais patrocinadores perceberam, garantindo assim o cachê desses artistas e sua produção mas, acima de tudo, mostrando que de fato surgia uma nova forma de visibilidade midiática. Entre artistas menos conhecido houveram também avanços interessantes quanto ao uso de tecnologias digitais para financiamento dos shows. O uso do QRCode foi amplamente usado nesse período, podendo direcionar o público à uma conta corrente, inclusive sendo útil para fidelizar o público ao artista através do acesso com o próprio celular. Em novembro do mesmo ano o mercado financeiro apresenta o PIX, uma inovação que surge exatamente no momento em que a crise financeira se agrava em decorrência da pandemia. Importante observar o fato desse mecanismo ser isento de tarifas bancárias, além de zerar a burocracia quanto ao tempo de transferência entre bancos diferentes, o que acabou dando mais um fôlego às lives, através das quais os artistas pediam seu cachê bem diante de seu público e com inédita e oportuna agilidade de acesso ao montante levantado. 


A plataforma Google chegou a divulgar em agosto de 2020 que aproximadamente 85 milhões de pessoas assistiram live até aquele mês. No entanto o agravamento da crise financeira no Brasil e as dificuldades do público em contribuir com seus artistas favoritos se tornou mais um entrave no desenvolvimento econômico a partir de nossa produção cultural. Nesse contexto diversos movimentos populares e a Comissão Parlamentar de Cultura no Congresso Nacional já vinham fazendo discussões dentro e fora do Legislativo, no sentido de articular a publicação de lei capaz de atender a classe artística, haja vista que o Decreto Legislativo No 6 de 20 de março do mesmo ano dava conta de reconhecer o estado de calamidade pública, possibilitando que medidas emergenciais fossem adotadas no sentido de viabilizar mecanismos de aporte de recursos financeiros em prol da cultura. Na esteira do Decreto de Calamidade Pública a Deputada Federal Benedita da Silva apresentou na Casa Legislativa o PL 1075/20, que na verdade tornou-se um texto de consenso, considerando que outros Projetos de Lei de apoio a cultura já estavam em fase de discussão. Ocorre que o agravamento da situação dos artistas motivou a categoria a criar uma ampla mobilização entre parlamentares, o que surtiu um efeito extremamente positivo. Em 26 de maio o texto foi aprovado no Plenário da Câmara e transformada na Lei Ordinária 14017/20 em 30 de junho. A Lei recebe então o nome de Aldir Blanc, compositor que morreu em consequência da Covid-19 em 04 de maio.  


A Lei Aldir Blanc tem seus recursos financeiros em um montante de 3 bilhões de Reais extraídos do Fundo Nacional de Cultura e 3% da renda das loterias federias repassados aos estados e municípios, de modo a garantir três parcelas de um auxílio mensal de 1.045 reais a cada agente cultural, além de recursos para manutenção dos espaços culturais não governamentais. bastava cada beneficiado comprovar sua prática artística por pelo menos 24 meses, além de comprovar também o não recebimento de outros benefícios governamentais ou fonte de renda continuada. Do montante dos recursos 20% deveria se destinar a editais públicos de fomento, garantindo que fossem realizados projetos online, obedecendo a necessidade distanciamento social. Ocorre que os indicadores da pandemia davam conta de que a Covid-19 estava longe de entrar numa fase de declínio e o decreto de Calamidade Pública tinha vigência até 31 de dezembro daquele ano. Logo se fez urgente discutir a prorrogação da Lei Aldir Blanc. Os recursos previstos para a execução desse abrangente projeto, porém, não foram totalmente utilizados e havia riscos de recolhimento do saldo para os cofres da União. Logo uma longa quebra de braço se deu entre o Parlamento juntamente com a classe artística em esfera nacional, em ação contrária ao governo, que via com grande interesse o saldo da Lei 14017/20 não executado de aproximadamente 700 milhões de Reais. Naquela primeira etapa de mobilização, chega a um total de 75% de projetos de execução enviados ao governo, totalizando 4.178 municípios. Após logos debates, mais uma vez o Congresso nacional cumpriu seu papel republicano e emendou a lei, que agora constava como Lei 14150/21. O Planalto por sua vez apresentou 8 vetos, sob a alegação de que o projeto “fere o interesse público”. Ainda assim, em 13 de maio de 2021 finalmente foram liberados os recursos restantes aos agentes culturais em todo país. 

Lei Paulo Gustavo e Aldir Blanc 2 em mais uma queda de braço com o governo 


Com o aporte de 3.86 bilhões dos juros da Fundo Nacional de Cultura, o primeiro paradigma superado foi o de prejuízo aos cofres públicos e comprometimento do teto de gastos de estados e municípios, fator fundamental inclusive para o convencimento de parlamentares das mais diferentes siglas partidárias. Se há com isso um avanço incontestável nesse duro processo de reconhecimento do necessário apoio à cadeia produtiva da cultura com algo fundamental é a ampla adesão do Congresso Nacional as pautas da cultura. Sem nenhum voto contrário desde a primeira votação sobre o tema na Câmara e no Senado, parece ter ficado claro aos nossos parlamentares que discutir cultura não é dar palanque para algum dos lados da atual polarização de ideologias políticas. Bom exemplo disso é afala do relator da Lei Paulo Gustavo no Senado, o Senador Alexandre Silveira (PSD-MG), ao afirmar que:

 

“A cultura não é sinal de trânsito: não é vermelha, amarela ou verde. Não é de esquerda, de centro ou de direita. Cultura tem a ver com a nossa tradição. O país não aguenta mais essa discussão infrutífera e mesquinha que prega que não devemos investir em cultura para não beneficiar lado A ou B. Cultura é enriquecimento intelectual. Nação nenhuma vai se desenvolver sem valorizar ou incentivar sua cultura” Fonte: Agência Senado 


Aprovada no Congresso em março, a Lei Aldir Blanc 2, que prevê recursos para os próximos 5 anos com aporte de 3 bilhões anuais oriundos de diversas fontes além do orçamento da União, sofreu veto total do atual presidente. No entanto há possibilidade de derrubada do veto, dependendo apenas de maioria absoluta nas duas casas (257 deputados e 41 senadores votando favoravelmente). Da mesma forma como se deu em relação a Lei Paulo Gustavo, o veto presidencial se baseia na ideia de contrariedade com o interesse público e a Lei de Responsabilidade Fiscal junto a estados e municípios, argumentação que não procede. O que esse governo ignora é a perda de renda e infraestrutura por parte de agentes culturais e salas de espetáculo, em grande maioria situados em espaços onde a população não tem acesso aos grande e tradicionais ambientes artísticos. Ou seja, garantir a rápida recuperação estrutural de artistas e técnicos é também possibilitar acesso à cidadania cultural que a população faz jus, sobretudo a camada de menor renda. 


Vale lembrar que a necessidade constante de apoio financeiro a quem circula a economia nacional diz respeito a uma cadeia produtiva que movimenta cerca de 3% do PIB segundo dados do IPEA, montante esse que em 2019 que foi de pouco mais de 7 trilhões de Reais. Ou seja, antes do período de dois anos de distanciamento social e quebra generalizada dos meios de produção cultural, a massa de trabalhadores da cultura mereceria apoio financeiro equivalentes estados de alguns países periféricos ao nosso como argentina, com um PIB de aproximadamente 400 bilhões no mesmo ano de 2019. Com a iminente aprovação dos dispositivos de apoio a cultura, porém, há a necessidade de que os municípios se qualifiquem ainda mais quanto aos mecanismos de repasse, gestão e acompanhamento dos recursos financeiros. Sendo a cultura um direito fundamental segundo a Constituição em seu Artigo 2015, assim como Saúde e Educação, vale considerar da mesma forma que já é hora de pensarmos uma campanha nacional massiva para efetivação dos fundos municipais de cultura. No contexto dos sistemas de controle e acompanhamento locais, podemos viver uma cidadania cultural plena e didática, sob o ponto de vista de participação popular nas políticas setoriais de cultura Brasil a dentro, que pode dar acuidade visual ao conjunto de formuladores de políticas culturais de apoio à cadeia produtiva da cultura.  

(arte: site PT/Cultura)

terça-feira, 5 de abril de 2022

31 DE MARÇO OU PRIMEIRO DE ABRIL? Memes e fake News, no início da Ditadura de 1964

Charge de Henfil: criatividade contundente


Esse texto foi publicado inicialmente em 31 de março no site Vozes de Mesquita. Estou replicando aqui para registro no blog, de modo a amplificar o alcance dessa discussão que mostra a importancia da resistencia ao regime ditatorial brasileiro, que se deu entre 1964 e 1995, com o uso de arte e muito humor no conteúdo das informações e notícias para além dos canais de comunicação aliados ao golpe militar.
 
Se existem duas peculiaridades no que diz respeito a comunicação informal para o povo em geral é a capacidade de proliferar notícias falsas e fazer piada com coisa séria. Com câmeras fotográficas, aplicativos de edição de áudio e vídeo e acesso gratuito a canais digitais, todo brasileiro portador de um smatphone pode divulgar uma ideia à seu bel prazer com poucas consequências negativas para si. O fato é que a proliferação de notícias falsas e essa pródiga capacidade de fazer piada jocosa em relação a fatos políticos não é de agora. Quem dá alguma atenção à nosso história recente consegue facilmente levantar fatos capazes de reafirmar que nosso povo de fato é, acima de tudo, extremamente criativo, o que não nos exime de cairmos nas próprias ciladas, no que se refere à comunicação popular com matérias tendenciosas de caráter “chapa branca”, nome dado a tudo que é de fonte oficial. Quando olhamos as sementes plantadas há mais de meio século pelos EUA no período da Guerra Fria referente a informação, veremos que fomos alvos fáceis para o que se tornou o estado de coisas que culminou com o golpe civil/militar de 64. 

Quem nunca ouviu a máxima “nos tempos da ditadura isso não era assim” ? Quem então desdenhava ou achava graça desse tipo afirmação viveu pra ver o nível de repressão a ideias de vanguarda e ataque a direitos civis sob os quais vivemos hoje, quando temos mais de seis mil militares em cargos civis, segundo o site RBA (Publicado 18/05/2021). A propaganda feita durante duas décadas de ditadura foi tão eficiente que hoje, mesmo com mais uma centena de denúncias formais no judiciário, há quem ainda defenda o atual estado de coisas. E nos chamados “anos de chumbo”, assim como hoje, não é apenas a propaganda militar que alavancou o movimento armado que surgiu de dentro do Estado brasileiro. Não atoa, quem olha a história desse período classifica hoje aquele levante como uma ditadura civil/militar, considerando a atuante participação e coautoria da camada mais favorecida da sociedade urbana e rural à época. São tantos paralelos em relação ao que temos hoje, que entendi ser relevante levantar alguns pontos, muito peculiares hoje e que têm lastro no que ocorreu naquele tenebroso período de silencio, conivência e, felizmente, bastante resistência. 

Os comunistas, sempre eles! 
A Guerra Fria, como sabemos, tem a ver com a corrida armamentista entre os EUA e o território que compreendia a antiga União Soviética. Desconsiderando aqui nessa abordagem as questões relacionada ao expansionismo territorial russo e estadunidense, além da já conhecida busca por ampliação de mercado consumidor de seus produtos, quero enfocar a eficiente estrutura de convencimento internacional aos interesses dos nossos vizinhos americanos. Logo no início dos anos 50 o senador estadunidense Joseph McCarthy iniciou uma verdadeira campanha anticomunista, a tal ponto de levar parte da população às raias da paranoia. O político, inicialmente por iniciativa própria, passa a incentivar o povo a perseguir os comunistas ou pessoas com ideias que se afinassem com o ideário russo. Não tardou para que tal ideia, conhecida posteriormente como Macartismo, se convertesse a uma maior repressão a negros e seus movimentos de aceitação e melhores condições de acesso à cidadania, por exemplo. O filme Boa Noite, Boa Sorte, de 2005 retrata bem o que foi esse primeiro movimento de uma ópera de terror psicológico no território norte-americano, que só teria paralelo com a chamada Guerra ao Terror, promovida décadas depois, pelo presidente Jorge Bush. 

O jornalista Joremir da Silva publicou em 01 de abril de 2019 no Jornal Correio do Povo uma interessante matéria, na qual ele discorre sobre o ex-presidente João Goulart e o processo que culminou com sua derrubada do poder. Taxado já em 1955 como comunista, Jango foi alvo do que chamaríamos hoje de fake News. O jornalista inclusive mostra um trecho no qual o presidente John Kennedy envia carta à Jango, como era apelidado, com uma posterior resposta ao presidente norte-americano, o que ilustra bem os motivos que o levaram à ser deposto e exilado: 
John Kennedy, em carta de 22 de outubro de 1962, arriscou: “Quero convidar Vossa Excelência para que as suas autoridades militares possam conversar com os meus militares sobre a possibilidade de participação em alguma base apropriada com os Estados Unidos e outras forças do hemisfério em qualquer ação militar que se torne necessária pelo desenvolvimento da situação em Cuba”. Jango respondeu com altivez: “A defesa da autodeterminação dos povos, em sua máxima amplitude, tornou-se o ponto crucial da política externa do Brasil, não apenas por motivo de ordem jurídica, mas por nele vermos o requisito indispensável à preservação da independência e das condições próprias sob as quais se processa a evolução de cada povo”. 

Não há indício algum de que Jango tivesse inclinações ao bloco comunista. Ao contrário, ele, que era um liberal de Direita, também entendia que seria ruim para o desenvolvimento nacional o alinhamento com aliados da União Soviética, considerando seu ideário de avanço econômico nos moldes ocidentais. Joremir Silva ainda completa em seu artigo: 
Teria Jango respondido dessa maneira por nutrir simpatias pelo comunismo e por querer transformar o Brasil numa grande Cuba? Ele tratou de eliminar qualquer dúvida: “O Brasil é um país democrático, em que o povo e governo condenam e repelem o comunismo internacional, mas onde se fazem sentir ainda perigosas pressões reacionárias, que procuram sob o disfarce do anticomunismo defender posições sociais e privilégios econômicos, contrariando desse modo o próprio processo democrático de nossa evolução”. Os Estados Unidos da América veriam nessa manifestação de independência uma clara inclinação ao comunismo. Assim se fez a história. 

O fato é que, ao discordar da proposta de alinhamento com os EUA, em favor da defesa da soberania nacional de todo e qualquer país, Jango se tornou alvo fácil para a sociedade política alinhada com a estratégia de hegemonia estadunidense. Logo, não demorou para que a mídia da época e a parcela mais abastada da sociedade o estigmatizasse como “o presidente que quer instaurar o comunismo no Brasil”. 

Marcha, em resposta ao discurso de Jango



“Deus, pátria e família”, como antigamente 
Algumas pessoas ainda hoje ficam abismadas pela forma como a igreja está estreitamente alinhada com o Estado brasileiro ou ao menos com governos em particular. Quando interesses se alinham, é comum ao redor do Globo que religiões se aproximem de governos auto intitulados conservadores. O que se torna um prato cheio para denominações religiosas que aspiram ascensão e credibilidade junto as massas, como vemos em nosso país. Se observarmos atos políticos fundamentalistas como o PL 4322/2019, que estabelece a bíblia como Patrimônio imaterial brasileiro, entenderemos que a necessidade de aproximação com as estruturas de poder tem na verdade tudo a ver com o projeto de expansionismo religioso, que visa, na verdade, sobrepujar a histórica proximidade com as religiões de matriz africana e estabelecer uma nova hegemonia religiosa no Brasil. Digo nova em consideração à tradicional relação entre a igreja católica romana e os três poderes da União, desde sempre, vide os crucifixos tão comuns em repartições públicas ainda hoje. Não distante dessa realidade, em 13 de março de 1964 Jango faz um ato público onde apresenta um conjunto de propostas e medidas visando o desenvolvimento social e econômico do Brasil. Tamanha foi a campanha contraria ao ato, que eclodiram várias manifestações públicas, sobretudo nas capitais do Rio e de São Paulo, congregando diversas instituições da sociedade civil em favor de ações capazes de resguardar o país de uma ameaça possível comunista, segundo a fala dos manifestantes. A chamada “Marcha da Família com Deus, pela Liberdade”, promovida sobretudo por mulheres com anuência da igreja católica, foi crucial para justificar a derrubada de João Goulart do poder e o efetivo golpe entre a noite de 31 de março e a madrugada do dia 01 de abril. 

A pegadinha do 01 de abril 
Relatórios de militares não deixam dúvidas de que, sim. Em 31de março de 1964, tropas da 4ª Região Militar e da 4ª Divisão de Infantaria, sob o comando do General Olímpio Mourão Filho (sim, eu disse Mourão), já se encontravam em prontidão as 7 da manhã em Juiz de Fora, Minas Gerais, no dia 31. Porém, ao meio dia de 01 de abril Jango ainda se encontrava despachando no Rio, sob a guarda do comando da 1ª Região Militar do Exército e o comando da 3ª Zonas Aérea da Aeronáutica. Houve também no bairro da Cinelândia uma verdadeira batalha das forças militares contra apoiadores de Jango, no fim do dia 01/04, quando efetivamente Jango sai de Brasilia e se refugia no Rio Grande do Sul, já na madrugada do dia 02/04. Ai sim, ratificado o golpe por parte do comando da Junta Militar que tomou o poder. 

 Pasquim: resistencia e informação de forma de deboche 


Eles não tiveram sossego 
Comentei no início que hoje é muito mais fácil de se fazer um meme relacionado a alguma figura pública, por conta da agilidade da internet e os apps à mão de adultos e crianças. Aplicativos como o Telegram, atrás do que se escondem tantas fake News, dificultam o rastreamento de mensagens que não condizem com a verdade em muitos dos casos. Mas não é só de publicações negativas que é feita a mídia popular. Basta uma gafe e, pronto! Mais uma imagem viralizando em pouquíssimo tempo em canais como Youtube ou sendo passada à milhares de pessoas em segundos, através do Watssap. Mas, acho importante imaginar a situação de jornalistas em pleno período de excessão, não alinhados ao regime militar ou mesmo fazendo-lhe oposição, todos com nomes e endereços de conhecimento público, produzindo material facilmente rastreado e confiscado. São inúmeros os casos de jornalistas desaparecidos, sobretudo a partir de 1968 quando foi publicado o Ato Institucional nº5, exatamente no ano em que foi criado o lendário tabloide O Pasquim. 

Contando inicialmente com o cartunista Jaguar e os jornalistas Tarso de Castro e Sergio Cabral (o de verdade), O Pasquim já inicia o ano de 1969 provocando a criação da Censura Prévia de publicações e shows, por conta da entrevista feita a Leila Diniz, com ideias que inclusive já viraram letra de música. Mesmo assim, com toda repressão e severo controle de suas publicações O Pasquim se manteve firme e inspirador durante quase todo o período de ditadura, com sua última publicação datada de fevereiro de 1991. Antes disso tal ato de resistência jocosa ainda agregou outras feras, como Ziraldo, Millor Fernandes, Rui Castro e Henfil. Esse último, imortalizado por suas charges e personagens que ilustram publicações e até camisetas, até hoje. Essa forma criativa de enfrentamento engraçado e criativo foi seguido pelo veículo mais em voga na época. Nesse percurso surgiram programas de TV que não se furtavam a alfinetar os militares e seus aliados, com O Planeta dos Homens de 1977 e Viva o Gordo, com Jô Soares em 1981. 

O Planeta dos Homens: como o jargão "o macaco tá certo" 


Muito já foi falado em relação a memória da resistência nesse controvertido 31 de março, que em nada contribui de fato quando o assunto é questionar se o golpe ocorreu ou não no 01 de abril. Basta lembrar que em 2016 passamos por uma manobra extremamente tendenciosa que depôs Dilma Roussef do poder, com o uso de métodos semelhantes de depreciação da imagem de uma presidência que segue na contramão da macroeconomia e da avareza. Importante aqui é a relevância dos fatos e dos atos, exatamente porque golpe é golpe, seja em que tempo for. 

Leia mais em: https://guiadoestudante.abril.com.br/estudo/5-filmes-para-voce-estudar-a-guerra-fria/ https://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/jango-e-o-comunismo-1.330072 https://blogdomariomagalhaes.blogosfera.uol.com.br/2014/03/30/por-que-a-data-do-golpe-e-1o-de-abril-de-1964-e-nao-31-de-marco-2/?cmpid=copiaecola

quarta-feira, 23 de março de 2022

MÚSICA RELIGIOSA NA MPB, É PRA TER?

 



Não precisamos necessariamente ser profundos conhecedores de História da nossa MPB pra compreender que o cancioneiro popular se altera de acordo com as mudanças da nossa sociedade. As mentalidades inclusive, mudam aos poucos e com sutilizas que dificilmente percebemos, senão com distanciamento temporal. Se olharmos para a chamada música sertaneja por exemplo, veremos que há um abismo na comparação entre Luiz Gonzaga e Michel Teló por exemplo. Mas, se voltarmos nossa atenção para duplas como Tonico e Tinoco e João Mineiro e Marciano, percebemos um gradual distanciamento em relação à chamada Música Caipira, o que se percebe tanto em relação as figuras de linguagem quanto nas cores das roupas ou se a viola é substituída por uma banda ao fundo. Outra sutileza que notamos, inclusive referente ao tema central abordado aqui, é quanto essa mesma música, tida como sertaneja, abre mão da exclusiva relação com o catolicismo. Esse sim, há tempos, transversal à profissão de fé cristã, seja no sertão agreste ou na vastidão de ricas terras da Região Norte do Brasil. Porém, com o vertiginoso crescimento do mercado gospel, as músicas saltam os muros das igrejas e passam a embalar a noite de bares e salas de espetáculo. O que é importante porém observar de inicio é que existe uma distinção entre o que é voltado especificamente a mumentos litúrgicos e o queserve de enlevo espiritual, diferença que se aplica também ao mecanismo de sensibilização metafísica mais usual em celebrações e rituais diversos, que é a música.


Assim como no exemplo anterior em relação às regiões que chamamos de “Interior” em comparação com grandes metrópoles, invariavelmente é a igreja ou paróquia local que acolhe ou promove comemorações municipais e, sobretudo, as festas de padroeiro de cada cidade. Logicamente, as bandas e cantores locais vêem a igreja tanto como espaço de geração de renda como também de visibilidade à sua produção musical. Não é de se estranhar que compositores locais se dediquem a compor canções de cunho religioso, considerando inclusive que muitos desses passaram boa parte ou até maioria de sua infância e juventude nas diversas missas. Quando cito tais artistas estou discutindo exatamente a inserção dessas figuras no imaginário local, no qual fé e cotidiano não se descolam. Assim, para cada local ou região, a música religiosa é na verdade uma profissão de fé, como algo que une a todos em um momento festivo ou de lazer onde, contudo, não necessariamente os valores éticos e morais da comunidade religiosa são cobrados.

O professor da USP Eduardo Vicente vai além em seu trabalho “Música e Fé: A cena religiosa no mercado fonográfico brasileiro”, onde fala de uma música comum a católicos e protestantes, que pretende se dedicar à difusão de “mensagens positivas” e não necessariamente voltada ao momento de culto ou celebração religiosa. O autor mostra em sua obra que, a partir dos anos 90, se inicia uma gradual fusão entre música de cunho religioso e o mercado fonográfico. O que vimos naquela década é que houve uma verdadeira corrida das grandes gravadoras em direção ao público que queria a música, mas não necessariamente a igreja. 

Tuda música do povo pode ser MPB?

A proposta aqui é fazer uma breve abordagem relacionada ao que vemos hoje, no que se refere a inserção de músicas religiosas no contexto da MPB, deixando claro que entendo como inevitável que isso ocorra, se considerarmos que expressões de fé nunca deixaram de fazer parte da sociedade de alguma forma, como o tradicional "vá com Deus". No entanto, sabemos que não é apenas o conjunto de práticas culturais contidas na  mentalidade da sociedade que altera espontaneamente o repertório em nossos apps de streaming ou o que ouvimos em nossas rádios preferidas. Na prática é exatamente a característica comercial dos canais de entretenimento e de lazer  que determina o tipo de música que ouvimos. E como a partir disso algumas expressões de fé têm sido efetivamente encaradas como produto, é inevitável que nossa música popular não esteja impregnadas de linguagens dessa ou aquela religião preponderante em nosso tempo presente.

É importante ressaltar também que a MPB tem sofrido mudanças ao longo desses seus cinquenta e poucos anos, desde que foi definida como gênero musical. Uma de suas principais características é exatamente esse turbilhão de informações no qual está envolvida, que é o conjunto de influências estéticas às quais somos submetidos durante todo tempo. São interferências absorvidas ao longo de décadas, naturalmente surgidas a partir das diversas interações culturais internas ou externas ao nosso vasto teritório naional. Mesmo assim, para compreender os fenômenos que naturalizam a escuta de cantos de fé no cancioneiro popular, algumas características históricas na concepção de nossa música precisam ser observadas, se considerarmos como importante a necessidade da manutenção de aspectos bem peculiares no ideário daquilo que um dia foi definido como MPB.

Para entendermos sobre quais peculiaridades estamos falando, é importante observarmos o que ocorreu com a Bossa Nova por exemplo, gênero musical que inicialmente se propõe a colocar o instrumento no mesmo patamar de protagonismo que a voz do intérprete, dinâmica que ocorre a partir de João Gilberto, tido historicamente como um dos criadores dessa nova forma de tocar e cantar. Desde a proposta de uma nova cara para o samba por parte da dita "segunda geração da Bossa Nova", passando pelo flerte do jazz com essa pegada brasileira, o que vemos é algo distinto da proposta inicial do músico baiano citado, que não buscava  nada além de um jeito ritmica e harmonicamente rebuscado de tocar o violão, sem o apego à necessidade do clássico vozeirão no canto popular. 

A proposta de uma MPB identitária enquanto gênero musical tem como elemento fundamental a preocupação de universitários no final dos anos sessenta, em resguardar aspectos de identificação de nossa música com nossas matrizes históricas e culturais, o que não contribuiu para que a própria Bossa Nova, como citamos acima, sofresse mutações. Ocorre que mudanças estéticas, sejam elas impostas ou propostas, sempre foram comuns nessa grande metrópole fluminense, que ja foi Capital tanto do Império como também da República, invariavelmente colocando as linguagens de origem popular em um patamar inferior. Ou seja, o "belo" tem desde sempre um vício de origem, que exclui as camadas populares e seu criacionismo espontâneo. Veja que o aclamado Vinicius de Moraes é um raro exemplo de compositor que assume publicamente seu desejo de criar um tipo de "manual do samba", de modo que o mesmo se adapte à nova ordem da estética musical urbana e metropolitana do séulo XX, como vemos em Samba da Benção:

"Mas pra fazer um samba com beleza
É preciso um bocado de tristeza
É preciso um bocado de tristeza
Senão, não se faz um samba não"

E não é só isso. Não satisfeito em detrminar forma, ele também define o perfil do sambista e seu estilo, ao escrever, segundo ele mesmo, "um bom samba":

"Fazer samba não é contar piada
E quem faz samba assim não é de nada
O bom samba é uma forma de oração"

É possível compreender Vinicius de Moraes e sua mentalidade. Ele foi uma pessoa que viveu o auge de sua juventude  ao som da chamada musica de "dor de cotovelo", daí o fato ouvirmos canções desse compositor, impregnadas do discurso comum a copositores de classe média como Antonio Maria e Dolores Duran que, se estivessem vivos hoje, disputariam mercado com Ana Carolina ou Isabela Taviane, com seus repertórios repleto de sofrências, ainda que o termo só se pejorativamente a estilos musicais menos intelectualizados.  Não por acaso, os ultimos anos da década de sessenta foram marcados pelo surgimento de algo mais dinâmico e participativo no que se refere a nossa música, o que não foi o caso da Bossa Nova, como ja foi dito aqui. Excluir o samba, a música caipira e o (verdadeiro) seranejo, de uma proposta de música de consumo popular que reflita a nossa cara, seria então um rotundo equívoco. Quem está um pouco mais atento ao que entra por nossos ouvidos involuntariamente, sabe que a música de consumo está desapegada de formulações teóricas ou protecionistas. De igual modo, o que "emana do povo", como diz a Constituição,  sempre dá lugar a tendências preponderantes em cada momento histórico, daí a preocupação daqueles universitários de 1969 em defender uma música que de fato seja popular e que reflita a realidade brasileira. Mesmo que à mercê das prateleiras do mercado, ainda é justificável que a música de massa reflita o gosto popular e suas crenças.

Música litúrgica ou religiosa

Conforme mencionei anteriormente, existe uma distinção entre o que é religioso e o que é litúrgico. Nessa jornada que levou cerca de trinta mil anos entre estar de pé e se ver como civilização, a humanidade sempre fez a ponte entre cotidiano, festa e fé, fazendo com que aquilo que entendemos como arte, se encarregasse de fazer a ponte que justifica o que fazemos no dia a dia, diante dos rituais e crenças que aprendemos respeitar em comunidade.  


Mas então, o que faz a distinção entre religião e liturgia? Segundo o dicionário Oxford, liturgia é “o conjunto dos elementos e práticas do culto religioso (missa, orações, cerimônias, sacramentos, objetos de culto etc.) instituídos por uma Igreja ou seita religiosa”. Ou seja, quando um elemento físico, ou gesto simbólico ocorre durante um ato coletivo em local ou ocasião predefinidos, pode-se dizer que tal expressão é litúrgica, pois ocorre em condições e momentos específicos, com a finalidade de reafirmar uma intenção ritualística. Por ouro lado, se entendermos que religião é, também segundo o mesmo dicionário citado, “postura intelectual e moral que resulta da crença na existência de um poder ou princípio superior, sobrenatural, do qual depende o destino do ser humano e ao qual se deve respeito e obediência”. Nesse caso, a religiosidade independe do momento de culto, no sentido que é possível ter uma postura particular ou pública, que demonstre respeito e devoção a um ser que está na esfera metafísica da percepção humana. Dessa firma é possível compreender o lugar que a fé ocupa na MPB, além ter na mente de forma clara o nível de confusão (voluntária ou não) que percebemos, quando ouvimos de um cantor de pagode em um show: “me ensina a ter santidade, quero amar somente a ti”. Considerando que o termo santidade tem a ver com “separação para o sagrado”, o que se torna complicado quando a necessidade não é a religação com Deus mas, gerar renda através da música.  


Já escrevi anteriormente, no texto que abordo a invenção do gospel no Brasil, que misturar música e religião é, em nossos dias, uma estratégia regida por alguns produtores ligados a tomada de poder político e ao capital financeiro. O sucesso dessa iniciativa é tão promissor que as ações de gente que lida com a produção artística em igrejas passaram a investir no mercado secular, intervindo inclusive nos rumos da nossa MPB. Quase trinta anos depois da criação da Rádio El Shaday, a mais popular e promissora entre as emissoras evangélicas, é possível ouvir a recém falecida compositora e intérprete Marilia Mendonça cantando na TV a canção adventista “Te Agradeço Meu Senhor”, enquanto cantoras como Pablo Vittar sequer constam na programação das principais rádios populares do país. Nesse caso, a estratégia de ocupação de um espaço privilegiado no cenário da música pop não passa apenas pela disputa de competência técnica ou de discurso, mas principalmente pela imposição de uma ética cristã enquanto modo de vida. Não é novidade então que cantores populares dedicam parte de seu repertório a uma pública profissão de fé. No entanto, é a partir de quando o gospel passar a se tornar um negócio rentável, que o movimento natural entre fé e música popular, passa a ter efeitos preocupantes, inserindo o canto religioso ao que conhecemos enquanto popular. 


Não por acaso, deixei por último a abordagem relacionada aos cantos populares que remetem a religiões de matriz africana e por motivos importantes. Desde 1998 quando o Padre Macelo Rossi lança seu primeiro CD, percebemos que a igreja católica entra na disputa por uma fatia no gospel brasileiro. Não seria ruim essa elevação de qualidade da música católica provocada pela disputa de mercado, se tal movimento midiático e capitalista não se aliasse ao Movimento de Renovação Carismática Católica. Esse movimento que chega oficialmente ao Brasil em 1970, com fortes inclinações pentecostais, inclusive resistindo ao uso de imagens de Santos. Não demorou muito para que essa parcela da igreja romana somasse fileiras com o radicalismo protestante e o enfrentamento a qualquer evidência de africanidade, ignorando a proximidade e influência cultural dos cultos afro junto a formação de nosso povo.


Se observarmos o que ocorre desde 1922, quando o cientista e professor Roquette Pinto faz a primeira transmissão de rádio no Brasil, muito antes da denominação e aceitação coletiva do que seja a MPB, veremos que sempre foi natural aos nossos ouvidos um canto a Orixá ou a santo católico nas rodas de samba e saraus. Ocorre que a chamada Era de Ouro do Rádio (entre os anos 30 e 50), vem consolidar a definição midiática do que chamamos de “gosto musical”, influenciando diretamente as mentes de milhões de famílias brasileiras. Era possível então ouvir nas rádios músicas religiosas como “Nem Ouro Nem Prata” do compositor Ruy Maurity, gravada em 1976: “Eu vi chover, eu vi relampear, mas mesmo assim o céu estava azul Samborê, Pemba, Folha de Jurema Oxóssi reina de norte a sul”. Vale acrescentar aqui que o compositor citado era branco, filho da primeira violinista a integrar a orquestra do Theatro Municipal do Rio. Ou seja, para as rádios comerciais dosanos 70 estava clara naquele momento a compreensão de que o cenário da música popular no Brasil era amplo, sem hegemonia de uma religião em particular, tendo seus micrifones abertos para a forma de fé que refletisse o mosaico da espiritualidade do povo, muito ligadas à ética daquele momento. Dois exzemplos de inegáveis fenômenos de mídia que partilhavam o mercado fonográfico nos anos 70 eram Roberto Carlos e Clara Nunes. Ambos conduziam suas carreiras aliando cantos seculares e religiosos em seus repertórios. Importante observar que não existia por parte de ambos naquele momento uma identificação de suas carreiras com uma camada social específica. Guardando aspectos de produção musical bem antenados com seu tempo, o repertório laico de cada um não superava em qualidade à parcela religiosa do que era cantado nos shows. Ou seja, para os fãs, o que era cantado era igualmente visto como “música boa”, daí o estrondoso e perene sucesso de ambos.  


O que procurei deixar claro aqui é que, salvo os aspectos relacionados à luta por hegemonia, é plenamente possível o convívio com uma MPB onde essa ou aquela música religiosa possa ter seu momento na programação das rádios. Ocorre que hoje as produtoras, cientes da necessidade de agradar ao público gospel, orienta seus artistas a ter ao menos uma música que seja, em seu repertorio. É claro que alguns compositores e intérpretes já consolidados bancam o nítido desgaste de justificar um canto a esse ou aquele orixá ou alguma outra entidade de matriz africana mas, sob pena de perder acesso a alguns espaços de visibilidade para sua obra.