Com o veto presidencial às Leis Paulo Gustavo e Aldir Blanc 2, agravado em relação as incertezas quanto a retomada da economia, me vem à mente uma frase que ouvi muito na adolescência. “Quando ouvir falar em ‘luz no fim do túnel’, cuidado. Pode ser um trem vindo na tua direção”. Ainda não é possível também identificar o que representa a luz no fim do túnel da Covid-19, tanto no contexto global quanto em nosso país, que passou da média diária de aproximadamente 80 mil casos para pouco mais de 13 mil entre maio de 2021 e maio deste ano, com números de hospitalização e mortalidade que já não são mais alarmantes, ainda que preocupantes de igual modo. O mitológico número que atingimos, de 666 mil mortes por Covid-19 no Brasil, nos dá uma noção aproximada do que cada família passou nesses últimos dois anos de medo, perdas e sofrimento, período esse que nos descolou da ideia natural de alegria e festa, sobretudo se levamos a sério o que foi a necessidade de isolamento social. Nesse sentido, poucas coisas foram tão difíceis e traumáticas quanto se afastar dos espaços de expressão artística naquele período do qual nunca esqueceremos. Se foi duro para todas as idades e camadas sociais estar distante fisicamente das expressões artísticas, pensemos então no tamanha da perda sofrida por produtores, técnicos e artistas em geral, que contribuem para nosso estado de bem estar e felicidade. Nesse sentido a abordagem aqui consiste em traçar uma linha de raciocínio que descreva a condição de fragilidade financeira que ainda assombra toda cadeia produtiva da cultura, bem como as ações que surgiram nesses dois anos, tanto por parte da sociedade civil quanto no campo das políticas públicas com foco na cultura em nosso país.
Com a adoção da estratégia de isolamento social, gradativamente as casas noturnas, teatros e demais espaços de fruição de bens culturais entenderam que o estado de Pandemia declarado pela OMS em 11 de março de 2020 deveria ser acatado. Com a vertiginosa queda na renda, no entanto, muitos artistas literalmente se desesperaram, considerando que para essa categoria de trabalhadores o público sempre foi fator fundamental no que diz respeito a geração de renda. O músico e produtor mineiro Rodrigo Unno, diante da situação difícil com a qual se deparou naquele momento, optou por uma estratégia diferenciada que surgia, que foram as lives, através das quais os shows e demais espetáculos poderiam ser transmitidos via plataformas digitais na internet. “Era investir ou fechar o estúdio”, afirmou Unno em entrevista ao canal da UFMG no Youtube, diante do impasse no qual vivia naquele momento. A partir de abril daquele ano então, boa parte dos produtores passaram a direcionar os recursos que lhes restavam para estruturas audiovisuais como filmadoras, refletores entre outros equipamentos específicos de produção de vídeo, como tentativa de diminuir os impactos do isolamento social, possibilitando também uma aproximação entre artista e público.
Foi no dia 28 de março de 2020 que a produção do cantor sertanejo Gustavo Lima abriu as porteiras da internet para um show ao vivo, que se transformaria rapidamente em alternativa para o público brasileiro carente de entretenimento. Em cinco horas de show o cantor fez uma performance em um formato indireto, com o qual muitos outros artísticas precisariam se acostumar. As lives se tornaram em boa medida naquele momento uma saída para artistas, sobretudo músicos que, por sua vez, mobilizavam uma equipe técnica grande em muitos casos. No dia 08 de abril de 2020 se deu o que foi considerado o ponto alto dessa tendência no mundo. O show da cantora goiana Marilia Mendonça transmitido ao vivo, contou com mais de 3,3 milhões de visualizações e foi considerado o mais assistido simultaneamente no mundo, contando com maquiadores, iluminador, eletricista, entre outros profissionais além de seus músicos. A principal virtude desses shows transmitidos via internet foi a visibilidade que eventuais patrocinadores perceberam, garantindo assim o cachê desses artistas e sua produção mas, acima de tudo, mostrando que de fato surgia uma nova forma de visibilidade midiática. Entre artistas menos conhecido houveram também avanços interessantes quanto ao uso de tecnologias digitais para financiamento dos shows. O uso do QRCode foi amplamente usado nesse período, podendo direcionar o público à uma conta corrente, inclusive sendo útil para fidelizar o público ao artista através do acesso com o próprio celular. Em novembro do mesmo ano o mercado financeiro apresenta o PIX, uma inovação que surge exatamente no momento em que a crise financeira se agrava em decorrência da pandemia. Importante observar o fato desse mecanismo ser isento de tarifas bancárias, além de zerar a burocracia quanto ao tempo de transferência entre bancos diferentes, o que acabou dando mais um fôlego às lives, através das quais os artistas pediam seu cachê bem diante de seu público e com inédita e oportuna agilidade de acesso ao montante levantado.
A plataforma Google chegou a divulgar em agosto de 2020 que aproximadamente 85 milhões de pessoas assistiram live até aquele mês. No entanto o agravamento da crise financeira no Brasil e as dificuldades do público em contribuir com seus artistas favoritos se tornou mais um entrave no desenvolvimento econômico a partir de nossa produção cultural. Nesse contexto diversos movimentos populares e a Comissão Parlamentar de Cultura no Congresso Nacional já vinham fazendo discussões dentro e fora do Legislativo, no sentido de articular a publicação de lei capaz de atender a classe artística, haja vista que o Decreto Legislativo No 6 de 20 de março do mesmo ano dava conta de reconhecer o estado de calamidade pública, possibilitando que medidas emergenciais fossem adotadas no sentido de viabilizar mecanismos de aporte de recursos financeiros em prol da cultura. Na esteira do Decreto de Calamidade Pública a Deputada Federal Benedita da Silva apresentou na Casa Legislativa o PL 1075/20, que na verdade tornou-se um texto de consenso, considerando que outros Projetos de Lei de apoio a cultura já estavam em fase de discussão. Ocorre que o agravamento da situação dos artistas motivou a categoria a criar uma ampla mobilização entre parlamentares, o que surtiu um efeito extremamente positivo. Em 26 de maio o texto foi aprovado no Plenário da Câmara e transformada na Lei Ordinária 14017/20 em 30 de junho. A Lei recebe então o nome de Aldir Blanc, compositor que morreu em consequência da Covid-19 em 04 de maio.
A Lei Aldir Blanc tem seus recursos financeiros em um montante de 3 bilhões de Reais extraídos do Fundo Nacional de Cultura e 3% da renda das loterias federias repassados aos estados e municípios, de modo a garantir três parcelas de um auxílio mensal de 1.045 reais a cada agente cultural, além de recursos para manutenção dos espaços culturais não governamentais. bastava cada beneficiado comprovar sua prática artística por pelo menos 24 meses, além de comprovar também o não recebimento de outros benefícios governamentais ou fonte de renda continuada. Do montante dos recursos 20% deveria se destinar a editais públicos de fomento, garantindo que fossem realizados projetos online, obedecendo a necessidade distanciamento social. Ocorre que os indicadores da pandemia davam conta de que a Covid-19 estava longe de entrar numa fase de declínio e o decreto de Calamidade Pública tinha vigência até 31 de dezembro daquele ano. Logo se fez urgente discutir a prorrogação da Lei Aldir Blanc. Os recursos previstos para a execução desse abrangente projeto, porém, não foram totalmente utilizados e havia riscos de recolhimento do saldo para os cofres da União. Logo uma longa quebra de braço se deu entre o Parlamento juntamente com a classe artística em esfera nacional, em ação contrária ao governo, que via com grande interesse o saldo da Lei 14017/20 não executado de aproximadamente 700 milhões de Reais. Naquela primeira etapa de mobilização, chega a um total de 75% de projetos de execução enviados ao governo, totalizando 4.178 municípios. Após logos debates, mais uma vez o Congresso nacional cumpriu seu papel republicano e emendou a lei, que agora constava como Lei 14150/21. O Planalto por sua vez apresentou 8 vetos, sob a alegação de que o projeto “fere o interesse público”. Ainda assim, em 13 de maio de 2021 finalmente foram liberados os recursos restantes aos agentes culturais em todo país.
Lei Paulo Gustavo e Aldir Blanc 2 em mais uma queda de braço com o governo
Com o aporte de 3.86 bilhões dos juros da Fundo Nacional de Cultura, o primeiro paradigma superado foi o de prejuízo aos cofres públicos e comprometimento do teto de gastos de estados e municípios, fator fundamental inclusive para o convencimento de parlamentares das mais diferentes siglas partidárias. Se há com isso um avanço incontestável nesse duro processo de reconhecimento do necessário apoio à cadeia produtiva da cultura com algo fundamental é a ampla adesão do Congresso Nacional as pautas da cultura. Sem nenhum voto contrário desde a primeira votação sobre o tema na Câmara e no Senado, parece ter ficado claro aos nossos parlamentares que discutir cultura não é dar palanque para algum dos lados da atual polarização de ideologias políticas. Bom exemplo disso é afala do relator da Lei Paulo Gustavo no Senado, o Senador Alexandre Silveira (PSD-MG), ao afirmar que:
“A cultura não é sinal de trânsito: não é vermelha, amarela ou verde. Não é de esquerda, de centro ou de direita. Cultura tem a ver com a nossa tradição. O país não aguenta mais essa discussão infrutífera e mesquinha que prega que não devemos investir em cultura para não beneficiar lado A ou B. Cultura é enriquecimento intelectual. Nação nenhuma vai se desenvolver sem valorizar ou incentivar sua cultura” Fonte: Agência Senado
Aprovada no Congresso em março, a Lei Aldir Blanc 2, que prevê recursos para os próximos 5 anos com aporte de 3 bilhões anuais oriundos de diversas fontes além do orçamento da União, sofreu veto total do atual presidente. No entanto há possibilidade de derrubada do veto, dependendo apenas de maioria absoluta nas duas casas (257 deputados e 41 senadores votando favoravelmente). Da mesma forma como se deu em relação a Lei Paulo Gustavo, o veto presidencial se baseia na ideia de contrariedade com o interesse público e a Lei de Responsabilidade Fiscal junto a estados e municípios, argumentação que não procede. O que esse governo ignora é a perda de renda e infraestrutura por parte de agentes culturais e salas de espetáculo, em grande maioria situados em espaços onde a população não tem acesso aos grande e tradicionais ambientes artísticos. Ou seja, garantir a rápida recuperação estrutural de artistas e técnicos é também possibilitar acesso à cidadania cultural que a população faz jus, sobretudo a camada de menor renda.
Vale lembrar que a necessidade constante de apoio financeiro a quem circula a economia nacional diz respeito a uma cadeia produtiva que movimenta cerca de 3% do PIB segundo dados do IPEA, montante esse que em 2019 que foi de pouco mais de 7 trilhões de Reais. Ou seja, antes do período de dois anos de distanciamento social e quebra generalizada dos meios de produção cultural, a massa de trabalhadores da cultura mereceria apoio financeiro equivalentes estados de alguns países periféricos ao nosso como argentina, com um PIB de aproximadamente 400 bilhões no mesmo ano de 2019. Com a iminente aprovação dos dispositivos de apoio a cultura, porém, há a necessidade de que os municípios se qualifiquem ainda mais quanto aos mecanismos de repasse, gestão e acompanhamento dos recursos financeiros. Sendo a cultura um direito fundamental segundo a Constituição em seu Artigo 2015, assim como Saúde e Educação, vale considerar da mesma forma que já é hora de pensarmos uma campanha nacional massiva para efetivação dos fundos municipais de cultura. No contexto dos sistemas de controle e acompanhamento locais, podemos viver uma cidadania cultural plena e didática, sob o ponto de vista de participação popular nas políticas setoriais de cultura Brasil a dentro, que pode dar acuidade visual ao conjunto de formuladores de políticas culturais de apoio à cadeia produtiva da cultura.
(arte: site PT/Cultura)