segunda-feira, 29 de novembro de 2021

MPB E A MÚSICA DE PROTESTO



Em 2020 iniciei um programa transmiido no youtube, chamado Pinta e Compositor, que assumiu a responsabilidade de ponderar questões relacionadas à MPB, corriqueiras nas informais rodas de coversa. Inicialmente a proposta passava por colher audios contendo falas dos próprios compositores, falando de si, enqudnto faço minha abordagem musicologicamente independente. Ocorre que, dessa fez, achei interessante abordar questões relacionadas ao que chamamos ou aprendemos a chamar de Música de Protesto", algo que não ousei fazer sozinho, daí é que surge a oportunidade de lançar mão de minha já tradicional parceria com o músico e produtor cultural Ewerson Claudio, a quem chama de musicólogo sem sem medo de erar. O é um garimpeiro de fatos e curiosidades ligadas à nossa música, o que fez desse papo de aproximadamene uma hora, algo leve e rico. Então, achei interessane oumentar ese enconro didaticamene, postando aqui seus apontametos, feitos para nossa conversa. E para que o pessoal enha oportunidade de acessar a íntegra da onvrsa, segue aqui o link. No mais, é dar uma lida nesse rasunho de idéias que elucida super em o que é, de forma bem ampliada omo é possivel perceber, esse conceito de música de protesto, cuidadosamente aabordado por Ewerson Claudio.


A MÚSICA DE PROTESTE

Tem como objetivo chamar a atenção para um determinado problema (de um país, uma região), seja de origem política, econômica ou social. Ela se manifesta não só através de letras “diretas”, mas também pela crônica, sátira e a crítica a costumes.

No Brasil e na América Latina, a música de protesto cumpriu importante papel na resistência à ditadura militar (1964-1985), mas, mesmo antes, a crítica através da música já se manifestava. A censura (que previamente liberava ou não letras de música, peças teatrais e filmes) aguçou a criatividade artística, que se utilizou de muitas metáforas para driblar a ditadura.

A música de protesto no Brasil se manifesta nos mais variados gêneros e mantém alta qualidade artística, indo muito além do caráter meramente “panfletário”.

Músicas citadas neste episódio:

I – Antes da ditadura

ASA BRANCA, 1947 – Luiz Gonzaga

CIDADE LAGOA, 1959 – Moreira da Silva

“Esta cidade, que ainda é maravilhosa / Tão cantada em verso e prosa / Desde os tempo da vovó / Tem um problema, crônico renitente / Qualquer chuva causa enchente / Não precisa ser toró // Basta que chova, mais ou menos meia hora / É batata, não demora, enche tudo por aí // Toda a cidade é uma enorme cachoeira / E da praça da Bandeira / Vou de lancha a Catumbi / Que maravilha, nossa linda Guanabara / Tudo enguiça, tudo para / Todo o trânsito engarrafa”

CANÇÃO DO SUBDESENVOLVIDO, 1961, - Carlos Lyra e Chico de Assis

“Santa Cruz...hoje o Brasil / Mas um dia o gigante despertou / Deixou de ser gigante adormecido / E dele um anão se levantou / Era um país subdesenvolvido / (...) / O povo brasileiro embora pense, dance e cante como americano / Não come como americano / Não bebe como americano / Vive menos, sofre mais”

II - Na ditadura militar

PRA NÃO DIZER QUE NÃO FALEI DE FLORES – Geraldo Vandré

ALEGRIA, ALEGRIA – Caetano Veloso

PESADELO – MPB4 (Paulo Cesar Pinheiro e Maurício Tapajós)

CÁLICE – Chico Buarque e Gilberto Gil

APESAR DE VOCÊ – Chico Buarque

O BÊBADO E A EQUILIBRISTA – João Bosco e Aldir Blanc

SAI DA FRENTE, BRASIL - Aldir Blanc & Maurício Tapajós (“O Brasil deixa estar como está / Se organiza é capaz de piorar / Se cobrir vira circo / Se cercar é hospício”)

MOSCA NA SOPA – Raul Seixas

TÁ CERTO, DOUTOR - Gonzaguinha (referência ao Decreto-Lei n.1.077, de 1970, “que estabelecia a censura em relação à moral e aos bons costumes” e à epidemia de meningite no início da década de 1970).

Na América Latina, figuras expressivas como Violeta Parra e Victor Jara (Chile), Mercedes Sosa (Argentina) e Daniel Viglietti (Uruguai), entre outros.

III – Na Nova República

VAI PASSAR – Chico Buarque

QUE PAÍS É ESTE / GERAÇÃO COCA-COLA – Legião Urbana


IV – Anos 2000

ATÉ QUANDO?, 2001 – Gabriel Pensador

A CARNE, 2002 – Elza Zoares

SAMBA DO FIM DO MUNDO, 2013 – EMICIDA

FLUTUA, 2017 – Johnny Hooker e Liniker (“Ninguém vai poder querer nos dizer como amar”)

SAMBA DA UTOPIA, 2018 – Jonathan Silva (“Se o mundo ficar pesado / Eu vou pedir emprestado / A palavra poesia / (...) / Se acontecer afinal / De entrar em nosso quintal / A palavra tirania / Pegue o tambor e o ganzá / Vamos pra rua gritar / A palavra utopia

LADRÃO, 2019 – Djonga

AS CARAVANAS, 2017 – Chico Buarque (“filha do Medo, a Raiva é a mãe da Covardia”)

SAMBA DO TREM, 2017 – Banda Gente (Iolly Amâncio, Wallace Cruz)

HISTÓRIA PRA NINAR GENTE GRANDE, 2019 (Manu da Cuíca, Luiz Carlos Máximo e outros) – Samba-enredo da Mangueira

NA CARA DA SOCIEDADE, 2019 – Serginho Meriti e Claudemir / Zeca Pagodinho (“O medo estampado na cara da sociedade / É o rico, é o pobre, é o mesmo perigo / É a bala perdida, é a guerra, é o caos / É a ignorância dos votos nos bons homens maus”)


Ewerson Cláudio de Azevedo

quarta-feira, 6 de outubro de 2021

O GOSPEL QUER O QUE É DE CESAR?


Já escrevi anteriormente aqui no blog um pouco dos caminhos que nos levaram a conhecer o que chamamos hoje de música gospel, no Brasil. O que há de muito particular nesse movimento musical que surge por aqui em meados dos anos  80 é o paralelo com o surgimento de lideranças econômicas e políticas com base em igrejas evangélicas. Assim, não por acaso, a música passa de elemento litúrgico a um forte mecanismo de comunicação de massa, onde as rádios evangélicas passam a ditar a nova ordem doutrinária e política, influenciando com suas estética tanto os de dentro quanto os de fora dos muros das igrejas, que já estão agora longe de se identificar como protestantes. Algumas congregações se distanciam inclusive do evangelho e até mesmo do cristianismo, tamanha a necessidade de embasamento de um novo discurso fundamentalista horizontalizado para a sociedade e para as diversas denominações cristãs, consolidado por esse fenômeno, que se tornou o grande mecanismo de mídia religiosa. Agora, a estética artística e não mais apenas litúrgica do povo cristão tem valor financeiro, disputando um discurso de  massa com o outros grupos econômicos formadores de opinião. O que vemos agora nos leva a crer que Deus pode até continuar querendo apenas o que é Dele. Porém, a igreja querer não apenas o que é de Deus, mas também o que é de Cesar.

Como sabemos, o termo gospel não é nosso. Tem origem nos cantos de trabalho (spirituals) dos negros ainda no período agrário escravocrata estadunidense. Com sua linguagem emotiva, apontando para as dores da discriminação e da escravidão, com muitas analogias  com o período do cativeiro judaico e tendo o céu como lugar redenção diante da dura vida dos negros naquele país, o gospel avança como linguagem, influenciando no século XX a música pop daquele país, agora com pouca distinção entre o canto litúrgico e o popular, como ainda vemos por lá, até hoje. 

Aqui no Brasil o que chamamos de musica gospel não tem paralelo com seu homônimo norte-americano. sua trajetória tupiniquim é resultado de uma evolução natural da musica sacra, que em dado momento sofre a intervenção de gente econômica e politicamente poderosa, que a transforma em produto de mercado e ferramenta para a tomada de poder.  A música sacra, como eram chamados os cantos litúrgicos em diversas denominações protestantes   por  aqui, passa a ser tocada sistematicamente nas rádios AM brasileiras a partir dos anos 60, quando surgem também as primeiras igrejas neopentecostais. Naquele momento as músicas reproduzem os cantos contidos nos hinários das igrejas, muito focadas na imagem de Deus como ser grandioso, único e senhor de tudo e também na chamada batalha espiritual, onde o "inimigo de nossas almas" é tido como grande culpado pelo "pecado" no qual o país está imerso, em plena Ditadura Militar. Entre os mais jovens, porém, surgem músicas de enlevo espiritual não tão aplicáveis aos momentos litúrgicos mas, com forte apelo celebrativo. São os chamados "corinhos", que trazem um clima coletivo mais arejado em comparação com os cantos tradicionais, conseguindo inclusive trazer novas figuras de linguagem não bíblicas, possibilitando aos jovens uma abordagem mais palatável em relação ao repertório ortodoxo, nos cultos e eventos extra oficiais, como festivais de música, encontros de jovens e seminários. De fato, o formato clássico de escrita  dos hinos sacros muitas vezes era incompreensível aos "novo convertidos", o que fazia sentido após um tempo de imersão na doutrina eclesiástica e sua história, como vemos no exemplo do canto 329 do hinário batista Cantor Cristão: Se da vida as vagas procelosas são/Se com desalento julgas tudo vão/Conta as muitas bênçãos, dize-as duma vez/Hás de ver surpreso quanto Deus já fez. 

Hinários, dando o tom da doutrina cristã-foto, cifraclub
No final dos anos 60 os corinhos, caracterizados inicialmente por pequenos   refrões, que levam essa nomenclatura de forma pejorativa por sua aplicação secundária na liturgia evangélica, gradativamente evolui, passando então a integrar o cancioneiro das igrejas, ainda com peculiaridades denominacionais. Ou seja, por um lado, o jovem das Assembleias de Deus cantam: "O culto hoje vai ser abençoado/Porque Jesus vai derramar o seu poder/Derrama Senhor, derrama Senhor/Derrama sobre nós o seu poder". Já os presbiterianos e batistas preferiam corinhos como: "Deus está aqui/Tão certo como o ar que eu respiro/Tão certo como o amanhã que se levanta/Tão certo como eu te falo e podes me ouvir". Esses cantos menos formais obedeciam critérios que distinguiam em suas letras, de forma bem clara, cada doutrina eclesiástica. Entre as igrejas tradicionais (Assemblia de Deus, Congregacional, Metodista, batista, presbiteriana, adventista), havia um limite velado de canto não litúrgicos a ser cantado na igreja, com uma normativa quase que espontânea e auto regulada. É um período no qual a doutrina eclesiástica predomina e influencia os crentes no nascedouro de sua fé, rechaçando naturalmente cantos conflitantes com o que se aprende nas Escolas Dominicais, porta de entrada para o batismo protestante. 

Disco canta para o mundo cristão, anos 50

Disco Obra Santa, 1969
Por outro lado, alguns cantos conseguem adesão e livre aceitação de forma horizontalizada por obedecer o discurso evangélico em sua essência. São cantos que  saem do status de meros "corinhos", oportunizando o surgimento de cantores e cantoras evangélicos que passam a circular igrejas com suas interpretações envolventes e de enlevo espiritual. Cabe acrescentar que as inovações musicais que levaram a música evangélica ao patamar que temos hoje, repete a lógica de centralidade urbana nacional. Ou seja, é a então Capital da República e a chamada "Locomotiva do Brasil" quem ditam a vanguarda do cancioneiro evangélico, mantendo então Rio e São Paulo como protagonistas das inovações que vemos até hoje. Assim é possível compreender que é nesse eixo urbano que surgem intérpretes com condições adequadas de aceitação das inovações que se seguem, já no final da primeira metade do século XX. Dentre esses, destaca-se o pioneirismo de Luz de Carvalho, cantor paulista nascido em 1925, que grava o primeiro LP de música evangélica em 33 rpm, no Brasil. Com uma história de vida que se confunde com tantas outras, aos 17 anos ele já integra o "Conjunto Havaiano", que viaja dentro e fora do país cantando música popular, até se converter ao cristianismo em 1947, após um culto realizado ao ar livre. Com uma carreira já em andamento, Luiz de Carvalho permaneceu durante um tempo cantando musica popular e em cultos da igreja Batista de Capinas, cidade onde também estudou música, no Conservatório Carlos Gomes, aprimorando sua técnica vocal e se consolidando como intérprete no meio evangélico, chegando a receber um Disco de Ouro em 1983, pelo lançamento de "A Deus Toda Gloria". Contudo, o pastor também batista Feliciano Amaral encabeça o pioneirismo fonográfico evangélico. O cantor consta inclusive no Livro Guinees como o cantor que está mais tempo em atividade no mundo. Cabe observar que sua carreira se inicia quase que em paralelo com sua ordenação ao pastorado, em 1948 na Igreja Batista da Pavuna, bairro do subúrbio carioca, gravando o primeiro disco evangélico brasileiro nesse ano. Feliciano Amaral é um dos principais exemplos de horizontalização de discurso doutrinário entre evangélicos. Alguns discursos e temas inclusive que se mantém hegemônicos até hoje, como um tipo de clausula pétrea entre os cristãos evangélicos, como vemos em duas estrofes da música "O Rosto de Cristo":

E ao ver as gravuras dos quadros pintados

Daquilo que dizem ser o meu Senhor

Meu ser não aceita o que está na tela

É falsa a inspiração do pintor

Não creio, não creio num Cristo vencido

Cheio de amargura, semblante de dor

Eu creio num Cristo de rosto alegre

Eu creio no Cristo que é vencedor

Por outro lado esses intérpretes, pioneiros em boa medida, são figuras que trazem consigo algum testemunho marcante de vida, como o caso do também pastor e cantor Victorino Silva, demonstrando agora que Deus não apenas deve ser adorado por sua criação. Jesus, por sua vez, agora não é "apenas" o intermediário entre Deus e o homens mas, também alguém a quem é possível recorrer em situações que saem do controle pessoal ou em casos de injustiça social ou mesmo perda de patrimônio, por exemplo. Victorino Silva, Morador de Mesquita, município que à época era 5º Distrito de Nova Iguaçu, foi vitima de discriminação por ter uma deficiência congênita. Ainda muito jovem se envolveu com o crime e as drogas, além de ser acometido de uma grave doença pulmonar que quase lhe tirou a vida. Em 1959 Victorino se converteu ao cristianismo evangélico após, segundo relato do próprio, ter sido milagrosamente curado, passa a cantar nos cultos do Pr. Paulo Macalão, pioneiro das Assembleias de Deus no Brasil (1930), compositor e tradutor de muitos do hinos cantados em sua denominação cristã. Com sua voz possante e extensa e sob as graças do Pr. Macalão que o acolheu, Victorino grava em 1963 seu primeiro trabalho fonográfica e daí, não parou mais, estando em atividade até hoje. Podemos dizer que Victorino Silva lança uma tendência na qual Deus é posto como solução de questões insolúveis aos olhos humanos, superando inclusive o princípio bíblico do livre arbítrio. O discurso contido em suas músicas reafirma sua história de vida, como vemos:

 Deus tem um plano em cada criatura

e aos astros ele dá o céu

e a cada rio ele dá um leito

e um caminho para mim, traçou

A minha vida eu entrego a Deus

pois o seu Filho entregou por mim

não importa onde for, seguirei meu Senhor

sobre terra ou mar

onde Deus mandar, irei

Os ano 70, com sua revolução cultural pipocando por vários cantos do mundo, inclusive o Brasil, trás consigo o início de um divisor de águas em relação a música evangélica. Com a difusão da ideia de "produção independente", muitas bandas e cantores surgem no cenário musical evangélico, trazendo diversidade e criatividade poética, além de inserir a então criminalizada guitarra, nos arranjos  musicais da época. Estilos musicais como a Bossa Nova e até mesmo o Rock vão aos poucos se infiltrando no cancioneiro das igrejas. porém, ainda nos circuitos e encontros alternativos em relação aos cultos de domingo a noite. Podemos destacar o pioneirismo na produção musical evangélica protagonizada pelo grupo Vencedores Por Cristo, criado em 1968 pertencente a uma missão cristã independente. A música "De vento em popa" é considerado entre produtores musicais evangélicos como o marco zero no que se refere à composição de  músicas que propõem uma ideologia cristã de fato. Lançado em 1977, o album deu um novo norte na relação musica instrumental e discurso, como vemos na letra:


De vento em popa, o sol por cima, embaixo o mar

A voz tão rouca já desafina se vai cantar

E os dois no barco rasgando as ondas

Vagando ao som das canções dos cais

Onde outro pileque, achando até que encontrou a paz


Mas veja lá no fim da história o que fica

Veja o que restou do pobre rapaz

Vendo que por baixo o mar já se agita

E por cima o sol calor já não traz

Pense, talvez seja essa sua vida

Lute, até encontrar o mundo melhor

Onde a dor, no peito não tem guarida

Onde brilhe sempre o sol...

Jesus batendo na sua porta, deseja entrar

Não lhe importa sua vida torta, quer te salvar

De um mundo torpe, de uma vida morta

De um sul sem norte, da morte enfim

E um novo riso te por nos lábios

Uma nova vida que não tem fim!

Abre o coração, derruba a muralha!

Deixe que Jesus te abrace também

Deixa que te inunde o amor que não falha

E o desejo de quem só te quer bem

Canta ao mundo inteiro a vida tão linda

Conta o que é ter perdão pelo amor

Quantas bênçãos há na graça infinda

Vive pra Jesus o Senhor!

Histórico, 11º disco da Produtora VPC, 1977

Como é possível notar nesse texto, há uma clara polarização no que diz respeito ao discurso contido em cada uma das duas vertentes da música evangélica nos anos 60 e 70. Se por um lado temos uma música que evoca os vínculos cristãos e a autocrítica, temos em contrapartida um constante pedido de socorro a Deus,  com um discurso muito calçado na culpa e no pecado como motriz da aproximação entre o homem e "seu Senhor". Os cantos de louvor dão lugar a um tipo de Ato de Contrição, como que, colocando o homem em "seu devido lugar", levando o crente ao entendimento de sua incapacidade de olhar para Deus em condição justa, ao menos que reconheça sua irrevogável condição de pecador, como vemos na letra de Entrei no Templo, de Ozéias de Paula, gravada em 1979:

Entrei no templo, dobrei os meus joelhos 

Para conversar com o Senhor

Desiludido do mundo, no peito, um sofrer profundo

Sem paz, sem fé, sem amor

Ajoelhado, senti o meu pecado

E o grande mal que ele me fez

Mesmo sem ter merecido, estava arrependido

Pedindo perdão mais uma vez    

Ozéias de Paula, membro da Assembléia de Deus desde sempre, é uma figura que pode então servir como referência de uma tendência da música evangélica, no sentido que seu disco "Cem Ovelhas" lançado em 1973, foi o primeiro disco evangélico a vender mais de um milhão de cópias. A letra da canção acima é título de seu disco de grande sucesso, gravado em 1979, após sua recuperação de um grave acindente automobilístico que quase o ceifou a vida. Sua recuperação o levou a trilhar o mesmo caminho que Victorino Silva. Porém agora, diferente de seus antecesores e contemporâneos, se aproximando da política, incusive sendo a imagem emblemática que elegendo seu sobrinho Otoni de Paula como vereador no Rio de Janeiro e posteriormente, deputado federal, o que se torna modus operandi na virada dos anos 80, quando a dobradinha música e política passam a andar de mãos dadas. É nesse período que se torna comum a aproximação entre figuras seculares e o meio evangélico, tendo inicialmente a industria fonográfica como porta de entrada e, posteriormente, a comunicação via rádio FM, que se torna um importante instrumento de acesso ao voto de um segmento específico, cativo e sedento por novidades.

A invenção do "gospel" tupiniquim

No eixo urbano São Paulo-Rio de Janeiro, como afirmei acima, surgem os movimentos musicais que influenciam a vanguarda da música evangélica entre os polos de discurso vistos como pentecostal ou não e que influenciam o restante dos evangélicos em nosso país. Quando então falamos sobre o gospel em terras brasileiras, vale observar o que diz a Doutora em comunicação Magali do Nascimento Cunha, ao afirmar que esse movimento se sustenta por aqui sobre os eixos "mídia, consumo e entretenimento", dando nome e endereço aos responsáveis por esse fenômeno religioso. Em sua tese de doutorado que leva o título de "Vinho novo em odres velhos. um olhar comunicacional sobre a explosão gospel no cenário religioso no Brasil", Cunha pondera se o que ela chama de "explosão gospel" é de fato um movimento cultural. Considerando o "modo hibrido de vida cristã" que se percebe em meados dos anos 90, em particular em São Paulo, a autora aponta para a Igreja Apostólica Renascer em Cristo como entidade religiosa responsável por buscar hegemonizar o uso do gospel enquanto linguagem e produto, em meio a diversidade musical existente a época. 

Marcha pra Jesus SP, um projeto nacional-foto iGospel
O jornal Folha de São Paulo publicou matéria no dia 14 de junho de 1994, na qual o pastor Estevam Hernandes, presidente da Renascer, declara deter direitos de uso do termo gospel. Ex-gerente de maketing da Xerox do Brasil, Hernandes sai de um mero ponto de pregação em sua casa no bairro Cambuci no ano de 1986, para mais de mil templos filiados em 20 anos. Hernandes cria nesse período um conglomerado de comunicação, tendo o gospel como marca, o que podemo ver na matéria da Folha, de 09 de janeiro de 2007:

Em 1990, Hernandes adquiria a primeira rádio da Renascer, trampolim para a atual rede de comunicação da Renascer: uma rede de televisão (a rede Gospel, cuja sinal abrange 74% do país, segundo a própria emissora), uma rede de emissoras de rádio (a Gospel FM), além de um dos empreendimentos mais bem sucedidos da igreja: uma gravadora de músicas religiosas, o que praticamente criou um novo segmento de consumo na indústria fonográfica do país, nos anos 80. A Igreja também possui estabelecimento de ensino privado (o Esar) e uma fundação de assistência social (a Fundação Renascer).

Em 1993 o casal Estavan e Sonia Hernandes cria a Marcha Para Jesus, que o casal estrategicamente promove sempre em período pré-eleitoral, com a finalidade de utilizar seus milhares de adeptos como moeda de troca com políticos pelo país. Essa, entre outras estratégias, ajudou a consolidar a imagem da igreja diante da classe política, que lhes serviu de amparo diante de uma série de consequências de seu expansionismo eclesiástico e midiático. Acusados pelo Ministério Público paulista por estelionato, falsidade ideológica e lavagem de dinheiro, Estevam e sua esposa Sonia Hernandes foram presos em 2007 por evasão de divisas. Os precursores do uso do gospel enquanto termo que define um novo modo de vida, na verdade adotam uma nomenclatura que caracteriza essa nova forma de horizontalizarão do ser cristão no Brasil. Principais difusores da chamada Teoria da Prosperidade, teóricos e teólogos chegam a denominar a Renascer como "seita", por conta de seu desprendimento doutrinário e distanciamento de princípios teológicos inerentes até mesmo ao neopentecostalíssimo.

No dia 01 de julho de 1987, a ponta carioca do eixo Rio-São Paulo, é inaugurada no bairro Vila da Penha a Rádio Melodia FM, com o slogam "A torre mais alta do Rio" pois, após ser comprada no ano anterior, manteve sua antena de transmissão em Petrópolis, de onde foi transferida, ampliando assim a capacidade de alcance daquela que chegou ser a rádio mais ouvida do estado, em 2001. Francisco Silva, que era um empresário muito bem sucedido e visionário, tomou para si o protagonismo da comunicação evangélica, que de fato era um enorme filão de mercado, coisa que ele conhecia bem, pois foi anunciante durante muitos anos na Radio Globo AM, vendendo o elixir Atalaia Jurubeba, verdadeiro fenômeno de vendas. Obviamente essa dobradinha púlpito e palco, que só teve paralelo na chamada Era do Rádio, soou como música literalmente nos ouvidos dos radiocomunicadores brasileiros, tornando-se o principal método para o vertiginoso crescimento dos evangélicos no Brasil, ainda que muito evangélicos não resistiam à corriqueira e recorrente pergunta:“o Francisco Silva é membro de qual igreja mesmo?” Pergunta que, obviamente, ficou sem resposta até 06 de outubro de 2017, quando faleceu, ao 79 anos. 

Aos 79 anos, morre um ícone da relação comunicação e política  
A partir daí podemos perceber que a esteira de oportunidade que se abre a partir do sucesso da Rádio Melodia FM não ficaria sem concorrência. O empreendedorismo gospel no Rio, cidade considerada durante décadas a capital cultural do Brasil, não deixaria de criar sua marca na história, influenciando uma nova geração de cristãos. Além disso, esse mecanismo midiático que se mostrou tão rentável e eficiente precisava agora de uma elevação em sua qualidade enquanto produto. Era necessário agora disputar a fatia elitizada do mercado.  Assim, em 25 de maio de 1992, tendo a MK Produções sob o comando de Marina de Oliveira, o canto evangélico nos anos 90 se notabiliza pela elevação no nível de qualidade de som e música, levando então para outro patamar a música cristã. A tal ponto de iniciar uma acirrada disputa de audiência com as rádios comerciais em AM e até mesmo as rádio FM não evangélicas.

Criada em 1987 como empresa de publicidade, a então MK Publicitá (publicidade em francês), criada por Arolde de Oliveira, muda seu estatuto social no inicio dos anos 90, passando a atuar no ramo de produção de eventos. A MK, agora administrada por Marina de Oliveira, filha de Arolde, mantém a já consolidada ideia de manter um pé nos dois lados da polarização discursiva evangélica. Com a contratação da Banda nilopolitana Catedral e a cantora iguaçuana Cassiane, a produtora dá o norte da atuação no mercado de música gospel, atendendo tanto à parcela moderada com uma banda de Rock e ao tradicionalismo pentecostal, com Cassiane uma cantora que cresceu cantando os tais “corinhos de fogo”. O fator fundamental está em dois importantes e significativos aspectos. De um lado, o investimento na juventude como público alvo, enquanto os arranjos musicais sofisticados passam a ser um tipo de mantra a ser repetido exaustivamente. Agora, a música evangélica não precisava mais de cantores que garantiam sua credibilidade tendo como prenome o título de pastor. Vale também observar aqui o fato de que, no momento anterior à “explosão gospel”, grandes e consolidadas cantoras evangélicas não gozavam do mesmo prestígio que os cantores. Nomes como Shirley Carvalhais, Mara Lima e Denise Cerqueira, ganhavam bem menos que os homens, ainda que seus discos fossem tão disputados nas livrarias evangélicas, quanto os dos cantores.

Disco comemorativo ao casamento de Marina e Brizola
Marina, ciente de que havia a necessidade de criar fatos geradores de mídia, sempre tomando proveito de momentos oportunos, como na criação em 1997 do Voices, grupo vocal feminino de cantoras, o qual não apenas produziu como também atuou como uma de suas integrantes. Outro fato que também causou reboliços no meu evangélico foi seu casamento com o radialista Alberto Brizola em 1999, casamento esse que durou até 2002 e possibilitou a eleição do comunicador a Deputado Estadual. Mesmo com toda visibilidade midiática que consolidou a produtora gospel, não demorou muito até que surgissem os primeiros litígios na MK Music. Problemas de cunho contratual fizeram com que a banda Catedral se desincompatibilizasse com a empresa e, consequentemente com Marina, que optou por contratar o cantor de rock evangélico paulista Brother Simeon, no lugar da banda. O mais grave e de maior repercussão nas mídias, no entanto, ocorre em 2007 com o questão que envolveu a MK e a cantora Cassiane, artista de maior prestígio da empresa. Buscando retornar à carreira independente, Cassiane aproveita o suposto término de contrato com a produtora para fechar contrato com outra gravadora. Resultado, um inesperado processo de litígio entre as partes leva o caso à polícia. O processo Nº2007.207.007783-7TJ/RJ – 11/02/2008 09:54:36 – Primeira instância – Distribuído em 05/12/2007, dá conta de que, segundo decisão judicial, a cantora perde o direito de comercializar o CD Faça a Diferença, seu novo trabalho musical, até a conclusão do inquérito.  Oito anos depois, Cassiane retorna à MK, no ano de 2015, retomando a parceria fundamental para ambas as parte mas, a polêmica não para por aí. Em 2020 vemos a última grande complicação que envolve a filha pródiga Cassiane e a MK Music. O videoclipe da música A Voz, causa furor literal em internautas por, segundo muitos, romantizar a violência doméstica. No vídeo uma mulher apanha do marido duas vezes e não apena evita denúncia de agressão como também o perdoa. Enquanto isso, Cassiane canta música que não tem diretamente nada haver com o que ocorre em cena. Resultado, mais de cinquenta mil “deslikes” em poucos dias, demonstrando o descontentamento dentro e fora do meio cristão evangélico.  A MK Music produziu novo clip, agora contendo cena final  na qual a mulher denuncia o marido, que em seguida é preso. Ainda assim, o clipe termina como o homem retornando para casa. Agora, apresentando à esposa uma bíblia, enquanto a mulher sorri diante do que vê, cena essa que conclui tanto a música quanto o vídeo.

No clipe de Cassiane, cena explícita de violência doméstica
Que a música é reflexo de uma cultura, não tenho dúvida. Porém, a música evangélica vem sendo sistematicamente usada como mecanismo de enriquecimento e alienação de um número enorme de brasileiros. Fatalmente teríamos a música evangélica avançando em direção do que temos hoje, com plataformas digitais que nos possibilitam ter acesso àquilo que cada uma pessoa entende como “música boa”. No entanto, o uso dos meios de comunicação por parte de empresas que visam unicamente o capital, vem descontruindo possibilidades. Será mesmo que as bandas evangélicas teriam um fim? É justo crer que a música evangélica reproduziria a lógica patriarcal de homens ganhando mais que mulheres, mesmo fazendo as mesmas coisas? É aceitável que a política eleitoral seja o destino dos líderes midiáticos e cantores, oriundos do meio cristão evangélico? Vivemos em um tempo de mercantilismo tecnológico da fé cristã, com investimentos pesados no pensamento horizontalizado do crente, com objetivos óbvios. Acesso a dinheiro e poder, a partir de uma fonte segura e fiel e canalização de conteúdos que possibilitem a unidade do pensamento cristão, ainda em dois polos. De um lado, uma igreja que ataca, demonizando os desafetos em nome de Deus. De outro lado, um mar de cristãos inertes, revestidos de uma capa de purismo e elevação de conhecimento, que não os permite intervir nem mesmo em qual música é capaz de ratificar a fé que professam, sem interferência de quem já está ganhando muito com isso.

saiba mais detalhes em:

https://www.portaldotrono.com/fernanda-brum-revela-experiencia-terrivel-ao-lado-de-cantora-gospel/

https://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u88455.shtml

https://acervo.folha.com.br/leitor.do?numero=12455&keyword=Renascer&anchor=4829841&origem=busca&originURL=&pd=bb4030e2cf8d57310a3caab8cb0dc997

https://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u88466.shtml

link Cassiane no Raul Gil fala sobre ação movida     pela  MK  

https://www.youtube.com/watch?v=0z8mdgpmdx8


terça-feira, 16 de março de 2021

CULTURA E ISOLAMENTO SE ENCONTRAM EM MEIO A SINDEMIA

Cultura e prepressão
"Atenção especial" do 20ºBPM à Festa de Arremate no bairro da Chatuba-Mesquita 

    Durante todos esses anos, nos quais venho atuando junto ao Centro de Cultura Popular da Baixada Fluminense, uma pergunta sempre ressurge: "qual o motivo de existir tanta repressão e desconhecimento quanto as expressões culturais atuantes em regiões periféricas?" A resposta que mais se aproxima da realidade é que as políticas públicas ainda privilegiam as expressões estéticas tradicionais ou midiáticas, em detrimento de manifestações coletivas na base da sociedade. Nesse texto me debruço sobre a ideia de Cultura Popular difundida pelos teóricos da cultura, sem que a formulação de ideia dos mesmos, contudo, interfira efetivamente na mudança de olhar do poder público, bem como da sociedade sobre tais grupos. Para pensarmos melhor sobre o tema, tomamos como exemplo a dificuldade com a qual ainda lidamos com eventos globais de saúde pública, ainda que tais agravos tenham amostragem no nosso lugar. Por isso mesmo não apenas ignoramos e criminalizamos quem pensa saúde de forma coletiva de forma séria e embasada, além de difundir a lógica da "gripezinha", subestimando a capacidade de adaptação e proliferação de tantas formas invisíveis de vida. Nessa analogia não trazemos para a roda o lado nocivo da Covid-19, mas seu notório desejo de existir e se adaptar para se manter vivo, ainda que de forma incompreendida pelos seres mais evoluídos. Não seria essa uma boa analogia entre esses seres minúsculos e as expressões na base da sociedade que chamamos de cultura popular?


Em vídeo publicado no portal da BBC News Brasil no YouTube, a repórter Taís Alegretti descreve a diferença entre pandemia e sindemia, mostrando que a segunda palavra é oriunda da junção entre sinergia, quando ocorre ação motivada pela associação entre dois ou mais órgãos ou mesmo sistemas, com uma finalidade específica e endemia, doença que ocorre em determinada região ou população. 


Ocorre que as novas variantes do Novo Coronavírus deixam claro que de fato, enquanto seres vivos, os vírus podem assumir uma forma de vida muito particular, interagindo com seu habitat, sobretudo quando associados a outros vírus ou condições ambientais favoráveis. Com isso, a relação entre Sindemia e cultura popular se dá, considerando a propriedade que ambas têm, de seguir o rumo de sua existência, ignorando a nomenclatura e metodologia hegemônica. O que pretendo com essa  analogia é levantar algumas ponderações relacionadas aos motivos que levam os poderes constituídos a minimizar a importância de um olhar amplo sobre práticas de saúde pública bem como de culturas populares, postas à margem das macropolíticas setoriais.


Bate Bola anos 2000
Clóvis, em 2020

Bate-bola, em 1987

    Outra ponderação que posso colocar aqui é que poucas situações são tão simbólicas na sociedade contemporânea como as que vemos nas discussões no campo da cultura, que se estabelece por exemplo entre povos indígenas. Quando observamos relatos ou documentários relacionados ao cotidiano de povos nativos, com suas práticas que envolvem o ensino de crianças, formação de novos adultos, além da maneira com a qual os mais velhos aceitos e difundem valores assimilados pelos mais novos, entendemos o quanto tudo ali está profundamente interligado. Por outro lado, as populações urbanas tendem a fragmentar as diversas facetas da vida em sociedade, fazendo distinção entre fatores diretamente ligados, como hábitos alimentares e economia, por exemplo ou religiosidade e formação política.


    

    O que abordamos aqui é o fato de observarmos a fragmentação da vida em sociedade através dos olhos de quem formula teoricamente questões ligadas a vida em comum, não tomando como prioridade a impressão dos indivíduos em questão sobre as próprias práticas.  Segundo Roger Chartier, a ideia de cultura popular é uma categoria que, no que se refere a sua nomenclatura, não parte de quem pratica, mas de quem observa, formula e conceitua, a colocando fora da esfera erudita, sempre sob interpretações e descrições restritas a determinado ponto de vista (Cartier, 1995). Ou seja, as pessoas em seu cotidiano não olham a vida de maneira fragmentada, ponderando os impactos dos hábitos alimentares sobre sua  sociabilidade, por exemplo. 


Festa de folia de reis: comunidade envolvida


    Homens, moradores de áreas periféricas, têm em muitos casos o hábito de ir ao futebol no domingo, fechando a manhã com uma cervejinha no bar, do mesmo modo que tal prática ocorre no subúrbio ou mesmo em alguma região mais abastada. Vemos assim que o desejo de realizar essa prática social não passa inicialmente por questões como a marca da cerveja a ser consumida ou mesmo se o campo é de várzea ou de grama sintética. Assim, a relevância dessa prática coletiva supera uma avaliação quanto à “vida financeira” dos participantes, seja em qual for a região habitada por determinado grupo de homens. O ato de realizar uma prática desportiva como forma de lazer transcende então as barreiras sociais e locais, sem que os envolvidos tenham a preocupação de realizar de forma sazonal um tipo de atividade a ser inserida na "vida social". Vemos também que práticas culturais podem transcender de sua esfera local para a global, superando aquela ideia de "coisa de rico" ou "coisa de pobre", dando lugar a algo horizontalizado e de igual modo identitária, seja em qual camada social ocorra.


    No que se refere então ao contexto das culturas populares, ocorre exatamente da mesma forma. Uma comunidade nativa não distingue, por exemplo, questões como  vida amorosa ou vida social por exemplo, fragmentando questões que estão diretamente interligadas, daí a definição tão particular de alguns modos de vida. Se por um lado nossa sociedade urbana e metropolitana lida com a heterogeneidade contida num contingente que pode chega a milhões de habitantes, vemos que pequenos grupos gozam do que o autor citado chama de “autonomia simbólica” em relação ao conjunto de culturas urbanizadas ou mesmo alguma análise erudita. O que vemos hoje, no que se refere às culturas populares, é enfim uma reedição do histórico modelo de invisibilidade dos pequenos grupos diante do Estado e uma busca por interpretação particular de dogmas religiosos. 


Leonora, Folia Flor do Oriente em Caxias: tradição de 150 anos

    

    Nesse período de pandemia percebemos uma particular distinção entre cultura hegemônica e cultura popular. Enquanto produtores e técnicos cobram, com razão, o pleno acesso aos recursos da Lei 14017/20, conhecida popularmente como Lei Aldir Blanc, lei que direciona recursos do Fundo Nacional de Cultura à chamada cadeia produtiva da cultura, grupos de Clóvis ou mestres de folias de reis conduzem suas tradicional agenda, ainda que de maneira precária, em relação ao período pé pandemia. Ocorre que esses grupos alternativos já vêm de um histórico de abandono e invisibilidade, tanto no que se refere ao estabelecimento de políticas públicas quanto em relação ao histórico estigma  que carregam, sob os olhos de instituições religiosas católicas e protestantes. 


    Os dois segmentos de nossa cultura popular citados acima têm como caraterística fundamental a “saída” em cortejo, não apenas em suas comunidades, como também em outros locais, sejam esses recebidos por grupos de mesmo gênero ou em encontro com os mesmos em locais previamente definidos, o que ocorre também nesse momento de isolamento social. Como compreender então o motivo de não ocorrer  em 2021 desfiles de agremiações carnavalescas que, de igual modo, realizam cortejos em vias públicas? O fato é que as agremiações carnavalescas gozam de maior visibilidade e credibilidade junto à estrutura estatal, em relação aos grupos de bate-bola e Clóvis, vistos comumente como grupos marginalizados, em relação às festas carnavalescas. O entendimento que temos nesse contexto é o fato de ser muito comum a falta de traquejo dos gestores de cultura no trato, em relação às identidades contidas no segmento de cultura popular. essa heterogeneidade, ainda que dê conta da diversidade contida na cidade, não atende a necessidade de horizontalizar a gestão da cultura e suas políticas decorrentes. 


    Nesse momento, no qual o isolamento social tem sido a palavra de ordem mais ignorada de todos os tempos, fica claro que o isolamento cultural é o que temos de endêmico em nossa sociedade. Sociedade essa que assimilou o que é fragmentação mas não alcança a ideia singularidade, muito provocada pela dupla fé e poder, que se aliam, em busca de uma hegemonia bastante conveniente. Independente de tudo isso, vemos grupos que se mantém vivos e ativos alí, bem debaixo de nosso olhos. o fato é que, assim como ocorre com determinados indivíduos indesejados por muitos à nossa volta, grupos que integram a base de nossa cultura popular muitas vezes são invisibilizados, entendendo que invisíveis, definitivamente não são. Esses grupos interagem, difundindo de forma "sindêmica" suas práticas.


--------- Mais detalhes em:

- SANTOS, Boaventura de Sousa. Direitos humanos: o desafio da interculturalidade. Revista Direitos Humanos, n. 2, p. 10-18, 2009.

- Cultura popular: revisitando um conceito historiográfico - Roger Chartier

- https://www.youtube.com/watch?v=7C_1vmhvLMA