Quando criança percebia a dificuldade com de minha mãe tentava se enquadrar ao conceito de família imposto pela igreja e pelo sistema legal da época, Haja visto que ela mesmo criava e sustentava sozinha os filhos. Era comum perceber que meu irmão recebia uma série de recomendações à noite, antes de todos dormirem, de maneira que ele seguisse tais normas no cuidado da casa e do irmão mais novo (eu, no caso) enquanto ela cumpria duas e à vezes três jornadas diária de trabalho, o que teve alguma amenidade com a chegada de minha avó, vinda da Bahia, quem assumiria então a função de co-gestora da família durante a semana. Era comum ouvir, durante as conversas informais com amigas, a recorrente afirmação: “você trabalha muito. precisa arranjar um marido!” Para meu orgulho, resistiu com bravura, sustentando, educando e entregando para a vida seus filhos, já devidamente preparados para isso.
Pintura de Debret retratando a hierarquia familiar do Brasil colônia
Mais de quarenta anos depois, é possível ver o Brasil ainda em conflito com sua realidade social, cultural e econômica, onde a família toma formas variadas sem que assumamos o rosto da maturidade nacional a cada vez que nos olhamos no espelho. Na semana passada, para exemplificar, deu-se aparentemente o desfecho sobre a decisão tomada pelo juiz Jeronymo Pedro Villas Boas, Juiz da 1ª Vara de Fazenda Pública de Goiânia, quando decidiu de forma arbitrária contra a união civil do casal Leo Mendes e Odílio Torres, contrariando a decisão do Supremo Tribunal de Justiça. Na ocasião, o magistrado afirmou que a União Estável fere o conceito de família previsto na Constituição Federal no § 3º do Art. 226 da Constituição Federal, que define:
É reconhecida como entidade familiar a convivência duradoura, pública e contínua, de um homem e uma mulher, estabelecida com objetivo de constituição de família.
Todavia, existem diversos estudos que discutem o novo perfil da família moderna, que tem características diversificadas, em especial no Brasil. Um exemplo de modernização do sistema legal para adequação à realidade das relações familiares hoje é a chamada Lei Maria da Penha (da Lei nº 11.340/06). O jovem advogado mineiro João Rodholfo, considera da seguinte maneira a aplicação da referida lei nessas questões:
Embora, em alguns pontos, a sociedade continue com a mentalidade machista, o fato é que a mulher passou a exercer um papel cada vez mais ativo dentro do lar familiar; o sustento passou a ser um dever de ambos e os papeis de ativo e passivo se revezam. Isto é, ora manda o homem ora manda a mulher. No Brasil, muito já se avançou desde adoção do Estado laico. A Constituição Federal de 1988 trouxe grandes inovações ao ordenamento jurídico nacional, passando a considerar a união estável como unidade familiar entre homem e mulher ou entre qualquer um dos pais e seus descendentes. Com isso, fora dado o ponta pé inicial para a implantação do novo conceito de Família, ou seja, o casamento deixou de ser sua única fonte, dividindo esse status com outros institutos. Logo, essa seara tornou-se fértil para as discussões doutrinárias e legislativas que deram origem a várias legislações especializadas em proteger a família originada em qualquer um dos novos arranjos.
A Lei Maria da Penha respalda inclusive um dado que o IBGE já apresenta a duas décadas, que é o constante aumento de idosos que sustentam suas famílias. Os números são de maneira notória mais altos nas camadas mais baixas da população. Porém, se refletem em todas as demais. Em 2991, 4,3 milhões de idosos se enquadravam nessa caso, subindo para 6,4 em 2005, configurando um aumento de cerca de 50% em menos de quinze anos. O senso 2000 mostra que o número de netos e bisnetos que moram com os avós, subiu para 52,4% em relação a pesquisa anterior. Um outro nicho de onde é possível perceber a atual realidade nacional está contido nos indicadores sociais do Programa Bolsa Família, que corrobora tanto o fato quanto os números, ainda mais acentuados no Nordeste do Brasil, onde a porcentagem chega a quase 80%.
O Programa Bolsa Família - Gestão matriarcal
Uma outra questão, retomando a primeira abordagem feita aqui, é a religiosa. Desde o vínculo da igreja com o Estado, herdado do modelo romano, temos a figura do pai não apenas como personagem principal mas também o filho como a única figura capaz de formar uma nova família quando adulto, relegando a filha a condição de membro de uma outra quando casada. Ainda é atribuído a Deus a imposição de uma união que deve ser heterogênea. Logo, no campo do divino não há discussão e não há união “abençoada” sem o aval da igreja, o que coloca qualquer configuração familiar à margem da sociedade e não apenas a atual união estável entre Mendes e Odilon em Goiás.
O mandachuva - Exemplo "engraçado" de relação familiar - sempre sob suspeita
Fontes: Constituição Federal, Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06), IBGE, Cartilha Programa Fome Zero, Rodholfo, João - Direito de Família - nalei.com.br