quinta-feira, 21 de novembro de 2019

JOÃO CÂNDIDO E O REGISTRO DE UM HERÓI


João Cândido na Praça XV-RJ - acervo Biblioteca Nacional

O mês de novembro está em vias de reafirmação enquanto mês da consciência negra. Com a inscrição do marinheiro João Cândido Felisberto no Livro dos Heróis e Heroínas do Estado do Rio de Janeiro, podemos agora celebrar oficialmente mais um herói negro. Através da Lei nº 8623, de 18 de novembro de 2019, João Cândido é assumido publicamente e de forma irrefutável, como figura fundamental para que os castigos físicos nos navios da Marinha do Brasil tivessem um fim definitivo.

Se dependesse da opinião pública e da imprensa naquele dia 22 de novembro 1910, a chamada Revolta da Chibata passaria batida em meio a conturbada conjuntura social e política do início de Século XX. Devemos lembrar que o Rio de Janeiro já vinha sendo sacudida por manifestações populares causadas pelo “bota a baixo”, como foi apelidada a estratégia de derrubada de cortiços e remoções em massa, promovidas por Pereira Passos durante sua gestão (1902-1906) que se prolongou até 1910. Nesse mesmo período ocorria a “revolta da  vacina” (10 a 16 de novembro de 1904), quando as pessoas eram obrigadas a se vacinar, inclusive com o direito de ter suas casas invadidas pela polícia. Os constantes rumores e manifestações políticas então contribuíram significativamente para que a população compreendesse claramente o que significava tal levante, considerando também que a Marinha mantinha completo silencio sobre o fato, de modo a evitar repercussão pública.
Marujada no Navio Minas Gerais, já dominado - Acervo Biblioteca Nacional
Em 2010 João Cândido foi homenageado, dando nome a um navio petroleiro, tido como o maior da história da Marinha Mercante brasileira.  Essa embarcação, no entanto, entrou em atividade dois anos depois, por conta de problemas de engenharia, o que levou a Transpetro a processar a o Estaleiro Atlântico Sul, responsável pela construção do navio petroleiro. Outra importante homenagem foi feita em São João de Meriti, com a inauguração de um busto em homenagem ao nosso herói. Nosso Almirante Negro teve dois bustos erguidos em sua homenagem. O primeiro em Porto Alegre sua terra natal, no ano de 2001, instalado na Praça da Marinha e em São João de Meriti, onde passou seus últimos anos de vida. Ele também dá nome a dezenas de unidades escolares no estado do Rio de Janeiro, entre escolas estaduais e municipais, espalhadas nas dez regiões fluminenses. Ainda em relação a São João de Meriti, está em fase final de estudos no município a criação do Museu João Candido. O projeto de instalação desse museu conta com suporte técnico da Superintendência de Museus do Estado o Rio de Janeiro. O projeto foi elaborado através de uma ação conjunta entre o Movimento Negro meritiense e a Subsecretaria de Igualdade Racial, que tem Frei Tatá a frente.
Frei Tatá, Jorge Florêncio e Adalberto Cantinho, filho de João Cândido em audiência pública no MPF/Meriti
Cândido e o Livro de Heróis Fluminenses
Há uma virtude importante na promulgação da Lei Nº 5808, de 25 de agosto de 2010, que cria o Livro de Heróis Fluminenses. Se considerarmos o peso que a história oficial carrega, estabelecendo o perfil dos vultos históricos exaltados desde sempre em nosso país, entenderemos que essa forma de registro pode se tornar um importante espaço de reparação e estabelecimento de um mecanismo de resguardo da memória de figuras verdadeiramente dignas de nota. Os critérios para escolha de nomes estabelecidos na lei são de igual modo importantes. O primeiro critério que considero fundamental é o que estabelece o número mínimo de 1/3 dos votos em plenário, para aprovação dos projetos apresentados, sendo que o homenageado deve ter pelo menos 50 anos de falecido ou desaparecido para que seu nome seja apreciado em plenário. Outro fator que considero importante é que o projeto de inserção de nome ao livro não deve tramitar em regime de urgência, o que configuraria impeditivo ao debate amplo e público em relação a figura a ser contemplada.

Por fim, em um momento no qual as estruturas democráticas veem sendo abaladas, com claros indícios de desmoronamento iminente, torna-se urgente e extremamente relevante estabelecer mecanismos de resguardo da memória de heróis e heroínas nacionais com os quais a população possa se espelhar.

sexta-feira, 18 de outubro de 2019

ENFRENTANDO UM NOVO GOLPE CONTRA A CULTURA FLUMINENSE

O ano de 2019 já está marcado pelo desmonte das estruturas democráticas estabelecidas por lei em todas as esferas de poder, ainda que cada avanço na direção da construção de marcos legais tenham sido alcançado a duras penas, em anos anteriores. O fato é que no estado do Rio de Janeiro o atual governo, que se alinha par e passo com o modelo estabelecido no governo federal, mostra-se de igual modo avesso ao contraditório no que se refere a participação popular e, acima de tudo, vem fazendo uso de artifícios legais para burlar a gestão participativa do bem público. Exemplo que elucida tal postura é a prorrogação em 2019 do Decreto de calamidade Financeira (primeira edição através da  Lei n° 7.483, de 08 de novembro de 2016, reeditada em 2017 e 2018), que limita o uso de recursos públicos, mesmo aqueles previstos no orçamento votado na Assembleia Legislativa do Estado-ALERJ.

No que se refere a gestão da cultura no governo Witzel, temos exemplo de má fé desde a constituição da equipe de transição, quando um conjunto de proposições partidas do Conselho Estadual de Política Cultura-CEPC e de um colegiado de representantes regionais (documento em anexo), foi recebido no dia 10 de dezembro de 2018, pelo então coordenador do GT de Cultura da Equipe de Transição de Witzel, Ruan Lira - assumido pelo próprio governador eleito como futuro secretário da pasta, no mesmo dia da entrega do documento - com a promessa de análise das propostas e compromisso firmado de que tais pleitos seriam absorvidos, tendo em vista que tais questões pautadas seguiam em cumprimento ao que estabelece a Lei 7035/2015 do Sistema Estadual de Cultura.

O fato é que pontos fundamentais, tais como compromisso com o Plano de Ações e Metas definidos pela 4ª Conferência Estadual de Cultura, Regulamentação e cumprimento do Programa de Fomento e Incentivo à Cultura, regionalização dos recursos, obedecendo a proposta de divisão dos recursos do Fundo Estadual de Cultura em 60% para Interior/Baixada Fluminense e 40% para a Capital, além de outras reivindicações, não tiveram resposta. Além disso, a proposta de calendário eleitoral de renovação do CEPC, definida em assembleia ordinária, foi ignorada, dando lugar a uma eleição pouco transparente e fora dos trâmites previstos tanto pela Lei do SEC , bem como do Regimento interno do Conselho.

Por último, vemos no site do governo do estado o uso de um dispositivo legal, porém que fere os trâmites corretos de gestão dos recursos da Lei do ICMS (Lei Estadual de Incentivo a Cultura). Através desse dispositivo, a Secretaria publicou resoluções  (nº08/fev 2019 e 36/julho 2019), lançando mão do dispositivo de excepcionalidade, para seleção de 13 projetos aprovados sem nenhuma avaliação prévia ou critério justificável. Cabe também observar que desses 13 projetos financiados, apenas 01 era de fora da Capital.

Um documento foi redigido por agentes culturais representantes das dez regiões do  estado (vide documento em anexo), denunciando as atitudes antidemocráticas e centralizadoras dessa gestão, documento esse que também mobiliza a uma ato público de repúdio a tal postura e afronta a um longo processo, na busca pela moralização e valorização da gestão cultural, que aponta não apenas para o governo do estado, mas para os 92 municípios fluminense.

quarta-feira, 25 de setembro de 2019

MESQUITA, 20 anos e sua eterna carência de um pai




Mesquita não é hoje um município diferente de seus vizinhos na Baixada Fluminense, principalmente se considerarmos nossas terras como filhas de uma mesma mãe, Nova Iguaçu, que até a década de 40 trazia quase todos os municípios a sua volta, em seu seio. Quando foi batido o martelo quanto a emancipação de Mesquita em 25 de setembro de 1999 através da Lei Estadual n.º 3.253, de 25 de setembro de 1999, chega ao fim um processo que já se arrastava desde a década de 50, quando o então 5º Distrito era o gigante da industrialização regional, tendo como exemplo a maior fábrica de telhas e tijolos da América Latina, uma fábrica de peças para trens, além de uma industria de beneficiamento de derivados de petróleo criada nos anos 20, fechada na década seguinte por conta de seu potencial poluidor, o que posteriormente gerou problemas no período de edificação da atual prefeitura, devido ao nível elevado de contaminação do solo. Isso, sem contar o célebre “ciclo da laranja”, que teve seu declínio com a II Guerra Mundial. Todos os grandes nomes ligados a esses empreendimentos se beneficiaram, deixando como memória apenas uma série de ações trabalhistas e os prédios abandonados.

Há tempos então se buscava a autonomia política tão justificável à epoca, através da iniciativa de memoráveis habitantes, porém sem sucesso. Uma população que salta de pouco mais de 09 mil para mais de 125 mil habitantes entre 1940 e 1980, entende que é hora de avançar dessa condição de subserviência à cidade-mãe. Porém, nem mesmo o número elevado de vereadores mesquitenses (chegando a 1/3 na ultima eleição) conseguiu garantir sucesso naquele sonho que escorria pelos dedos. O senador Antonio Carlos Magalhães pega todavia de surpresa todos da Comissão de Emancipação em 1996 quando consegue emplacar uma emenda constitucional, impedindo mais emancipações territoriais. No entanto, como o processo mesquitense já tramitava na instância máxima em Brasília, faltava apenas adquirir recursos financeiros para o processo não fosse arquivado ou indeferido. Membros da Comissão de Emancipação recorrem então ao ex-deputado estadual José Montes Paixão, cuja família remonta o período de explosão da ocupação urbana nesse antigo distrito iguaçuanos.

A condição era simples e clara. Paixão contribuiria com recursos jurídicos e financeiros se constasse como signatário desse longo processo, o que de fato aconteceu. Quem tivesse acesso ao processo em Brasília se deparava com José Montes Paixão como responsável pelo processo, em detrimento de nomes como o de Seu Edmundo e muitos outros, que acompanhava de perto essa luta desde 1947, como consta do livro “Das Terras e Mutambó ao Município de Mesquita” (2007), de Fátima de Souza. Fatalmente, com o sucesso da intervenção de Paixão e o desembolso de recursos que, logicamente, os humildes cidadãos não conseguiram aportar, José Paixão reivindicou para si o título de “Pai da Emancipação”, elegendo-se com esmagadora maioria os votos no primeiro pleito eleitoral, conduzindo consigo vários apoiadores do processo, à essa gestão pioneira.

O que motivou o processo de emancipação
O processo de emancipação de Mesquita tem início em 1957, motivado pelo desejo de mais atenção a demandas que se justificavam há muito tempo. Segundo o geógrafo Ricardo “Breguelé” Simões (2007), a centralização do poder iguaçuano nos anos 50 foi o fator que motivou o início do processo de emancipação mesquitense. O então 5º Distrito já apresenta um importante histórico de desenvolvimento econômico, que não era condizente com a contrapartida da administração pública, que não dava ao Distrito a devida atenção, no que se refere a benfeitorias como saneamento, abastecimento e água e pavimentação de vias. Além disso, já existia uma classe média bastante significativa em Mesquita, oriunda do desenvolvimento industrial que já existia no local.  Pelo menos três grandes indústrias geravam emprego e renda a Mesquita, empresas essas que, pelo seu tamanho e geração de riqueza, fez emergir uma casta social importante, que não admitia ser ignorada por Nova Iguaçu e alguns indicadores sociais demonstram claramente isso.

Criado em 1946 com o nome de Sociedade Recreativa de Mesquita, o clube se reunião em uma pequena sede no Centro de Mesquita, adquirindo rapidamente o espaço do atual prédio dois anos depois, agora com o nome de Mesquita Tênis Clube. Fator emblemático  para a criação do clube foi a existência do Mesquita Futebol clube, cujo perfil dos sócios e demais integrantes não condizia com o desejo da classe média local, segundo o relato do pesquisador mesquitense Carlos “Charles” Alberto:  “A troca de nome foi para não ser confundido com o rival da época, o Mesquita Futebol Clube, primeiro clube da cidade, fundado em 1920 e conhecido como ‘‘os blacks’’, pois aceitava negros como sócios”. Segundo D. Dininha, moradora nascida em Mesquita em 1930 e ex-atleta do clube, os bailes do Tênis Clube eram “invejáveis”. Era comum a participação de grandes orquestras nas seletas festas, onde participava inclusive sua amiga, conhecida a época como “Lili Mocinha”, que hoje conhecemos como Lili Safra, filha do industrial Mr. Watkins, dono da indústria de laminação, que tinha seu pátio industrial em Mesquita, empregando centenas de munícipes.

Outro fator fundamental para a justificativa dos emancipacionistas dos anos 50 foi a capacidade de desenvolvimento urbano do Distrito que tem como sua maior motivação o estabelecimento daquela que seria considerada a maior fábrica de materiais de construção da América Latina. Criada em 1908 pelo respeitadíssimo engenheiro Américo Ludolf, que incluiu na razão social da empresa, seu filho Alfredo Ludolf, ainda criança, a Companhia Materiais de Construção não apenas foi considerada a maior no gênero como também pode ser considerada o maior exemplo do modelo fordista no país. Com dimensões gigantescas, a fábrica tinha uma linha própria de trem que a ligava diretamente a “Estação Geronymo Mesquita”, como era chamada a época, por ter suas terras pertencentes anteriormente ao filho do Conde de Bonfim. Os trabalhadores, que contribuíram com o desenvolvimento tecnológico  de ponta da fábrica, tinham acesso a benefícios como casa, escola para seus filhos e um cinema, denominado “Beija-Flor” que, no período do carnaval, cessava as   projeções para sediar a festa dos funcionários, que partia dali para um cortejo nas imediações. Cabe observar que os limites da fábrica de quase 4km2, era a fronteira do Rio Sarapuí que separava o 5º Distrito iguaçuano do município de Nilópolis, para onde se mudou boa parte dos antigos funcionários após o fechamento da fábrica em 1957.


20 anos depois, Mesquita avançou proporcionalmente menos em relação à sua antiga condição de 5º Distrito. Ainda que apenas na segunda gestão do município tenha sido edificada a grande maioria dos prédios públicos e programas municiais ou vinculados ao governo federal, a população ainda não tomou para si as rédeas da política local, vivendo desde a Emancipação em 1999 uma constante turbulência e desestabilidade política, sobretudo na relação entre os poderes executivo e legislativo. Ou seja, ainda que figuras da cena cultural e esportiva surjam na mídia elevando o nome da cidade, ainda é a classe política que aparece, hora na condição de salvador de todas as coisas e pai dos pequenos avanços ou ilustrando as páginas de fofoca ou policiais, por conta dos constantes  embates ou revelações bombásticas.
Ou a população mesquitese se apropria de sua trajetória e destino ou seremos fadados a nos submeter de tempos em tempos aos novos pais da nossa história.

O Hino de Mesquita, uma novela à parte


Cerca de uma década após a autonomia política de Mesquita, ainda lhe faltava um de seus principais símbolos. Considerando a riqueza histórica desse que foi um dos lugares mais ricos, influentes e prósperos do então Recôncavo da Guanabara, como era conhecida a Região, era de se imaginar que ricos versos e melodias surgiriam para abrilhantar e elevar a autoestima dos munícipes.
Publicada em 28 de junho de 2002, a Lei Nº 110 dispunha sobre o edital que possibilitaria a escolha dos símbolos municiais (brasão, bandeira e hino). O Artista gráfico conhecido como Jorge Baleia foi o vencedor nas categorias bandeira e brasão. Porém, em relação ao hino, as coisas se complicaram e vou citar aqui fatos por conhecimento próprio, pois os documentos comprobatórios não estão disponíveis. No concurso citado, houve impugnação do resultado em relação ao hino, ocorrendo o mesmo em 2009, sendo que nessa ocasião não foi publicado documento oficial. Extra oficialmente é adotado o hino vencedor (omitindo aqui nomes por questões obvias), ratificado pela comissão julgadora do último certame, ainda que tenha havido recurso de impugnação junto a prefeitura, litígio esse que ainda não garantiu ao vencedor o direito de constar oficialmente seu nome nos anais da história, bem como a gravação oficial, ainda que o tal hino vencedor e sob litígio, seja executado de forma não oficial.

Segue o link do hino de Mesquita, na voz do compositor João Renato




sábado, 7 de setembro de 2019

Suporte para violão, baixo, guitarra e etc...

Fiz esse suporte, que achei ser mais prático que os demais que vi na internet. Vão aí os detalhes nas fotos, pra que você consiga fazer parecido ou copiar. É um formato que não necessita de metal ou solda, o que facilita a feitura.



Suporte para três instrumentos, feito de ripa de palete, medindo 80cm
O baixo é o mais pesado dos três o que não comprometeu em nada a distribuição do peso. Entendi que três parafusos já seriam suficientes. 
Tira sintética, bem resistente
A tira é sintética, do tipo usado em bolsas. O furo nas tiras eu fiz cortando, mas foi necessário queimar o buraco, as extremidades e as laterias, pra evitar que a tira desfie.
Parafuso na parte superior e furo de fixação na parede, na mesma direção 
A cabeça dos parafusos superiores são bem grandes, pra evitar que a tira escape. 
Parafusos ficam escondidos pelos instrumentos

procurei colocar esses parafusos bem na direção dos pinos de segurança, pra deixá-los escondidos atrás dos instrumentos. Prendi a madeira na parede com três buchas, colocadas na direção de cada pino. Mesmo assim, não foi necessário usar uma bucha maior que a 6. 

sexta-feira, 2 de agosto de 2019

INOVAÇÃO: LIBERDADE, CRIATIVIDADE OU NECESSIDADE DE UM MESTRE DE BATERIA?


Ritmistas, carnaval carioca, 1965 (Correio da Manhã)
“Todo mundo te conhece ao longe
Pelo som dos seus tamborins
E o rufar do seu tambor”
Chico Buarque

Uma das grandes virtudes das várias expressões estéticas oriundas da base da sociedade é sua franca aderência ao novo. Exatamente por isso o carnaval é uma grande e buliçosa caixa de surpresas, capaz de produzir, sem preconceitos, espanto e alegria à seus espectadores, equilibrando, através de uma ética própria, tanto inovações tecnológicas e rítmicas quanto valores caros à mentalidade de uma escola de samba. Nesse sentido, se existe no contexto de uma agremiação carnavalesca um fator capaz de concentrar elementos que remontam nossa ancestralidade estética, em comum acordo com a velocidade e sonoridade de nossos tempos, esse fator fundamentalmente é a bateria. Ao longo do tempo, no entanto, vemos que o processo evolutivo ao qual uma bateria de escola de samba se submete, a levou a um nível de exigência próprio, onde a mítica “nota 10” é hoje condição sine qua non.

Hipoteticamente, se um grupo de amigos que curtem carnaval pensar na formação de um bloco de embalo, mesmo que pelo simples e sublime desejo de celebrar a felicidade, necessariamente a aquisição de instrumentos básicos para formação de uma bateria, será a primeira demanda. Mesmo que, posteriormente, esse pseudo grupo entenda a necessidade de definir o samba que vai embalar o cortejo e até mesmo se o gênero musical adotado será a tradicional e divertida marchinha, há que se pensar na condução rítmica do grupo. Ou seja, ainda assim a bateria continuará sendo prioridade, por conta da necessidade de um olhar mais apurado quanto ao tipo e qualidade dos instrumentos e pela necessidade de uma condução rítmica que garanta o alegre percurso, definido por aqueles foliões imaginários.

Seguindo o mesmo raciocínio, quando olhamos para o ensino formal de música, vemos que um de seus pontos fundamentais é o entendimento do conceito de “andamento” ou “pulsação”. O entendimento desse  conceito musical torna-se fundamental, tendo em vista que “a manutenção regular e a sustentação da cadência da Bateria em consonância com o Samba-Enredo”, conforme reza o regulamento estabelecido pela Liga Independente das Escolas de Samba-LIESA, é o primeiro dos três fatores dignos de atenção dos jurados. Essa “regularidade” se define pela velocidade continua a ser aplicada na peça musical e, o que há de comum às duas definições é exatamente a firmeza e continuidade necessárias à execução da peça musical, sem as quais, como no jargão do carnaval, a bateria fatalmente vai “atravessar” o samba. Já o ritmo, consiste em definir o “desenho” dos sons que serão articulados em uma determinada velocidade. Nesse sentido, deveria ser fundamental manter um padrão rítmico, de igual modo constante e estável. Exatamente por isso o mestre de bateria, munidos de sua liberdade estética, se esmera em desafiar esse tipo de ordem natural, imposta pela ortodoxia musical acadêmica.


Bateria do Império Serrano, Mestre Calisto -1957
apenas surdo de marcação para número reduzido de componentes

Ao observarmos a sonoridade das baterias das diversas agremiações no Rio de Janeiro, pelo menos até os anos 60, não perceberemos muitas variações rítmicas ou alterações de velocidade. No entanto, já é possível perceber que instrumentos não convencionais são gradualmente inseridos, como os pratos e a frigideira, implantados pelo percussionista Calixto dos Anjos, do Império Serrano que, segundo Nei Lopes, já se ouve na avenida em meados dos anos 50.  Por ter caráter de solista, instrumentos como esses são postados à frente do conjunto, deixando mais ao centro os instrumentos responsáveis pela constância do andamento, como a caixa e o repinique. O mesmo se aplica aos surdos, responsáveis pela regularidade da pulsação durante os desfiles. O surdo de terceira, instrumento menos grave que o de “marcação” (de segunda) e o “resposta” (de primeira), já é notado nos anos 70, pelo menos em são paulo, no GRES Nenê de Vila Matilde, agremiação fundada nos anos 50 em São Paulo. A finalidade desse terceiro som  grave é exatamente a de possibilitar a “bossa”, na necessidade da marcação dos tempos 1-2, fundamentais para a marcha regular dos componentes sem, contudo, comprometer o segundo item em julgamento, que é “a perfeita conjugação dos sons emitidos pelos vários instrumentos”.

 Outro fator de mudança na performance das baterias de escola de samba é o aumento na pulsação, provocado pela delimitação de tempo destinado ao desfile no grupo especial, onde  uma agremiação chega a ter cinco mil componentes. Desse modo as batidas tornam-se mais simplificadas, de modo a facilitar a execução por parte do instrumentista durante o limite de setenta e cinco minutos de desfile. Ainda assim é possível ao mestre de bateria dar seu toque pessoal ao acompanhamento do cortejo, dinamizando ritmicamente o acompanhamento sem, no entanto, interferir na interpretação do samba enredo ou na evolução das diversas alas. O que não é uma novidade, mesmo antes das últimas alterações na delimitação no tempo de desfile e o elevado nível de criatividade aplicado à bateria. 

José Pereira da Silva, o lendário Mestre André
Foi no desfile de 1959 que a Mocidade Independente de Padre Miguel, até então uma novata no carnaval carioca, trouxe uma inovação. Sob o comando de Mestre André, a escola  da Zona Oeste do Rio de Janeiro faz um breque na bateria, mantendo apenas as caixas de guerra como referência para a pulsação. Aquela intervenção radical no acompanhamento do desfile tornou-se um divisor de águas. No terceiro item fundamental em julgamento está “a criatividade e a versatilidade da Bateria”, dando ao mestre a mesma importância dada aos grandes regentes eruditos. Ou seja, a competente interpretação criativa sobre uma base rítmica já definida é capaz de garantir o ponto alto do julgamento desse primeiro quesito em julgamento, com a nota 10. As inivações na Mocidade não pararam por aí. A partir dos anos 2000 se consolidou outra inovação com o uso da frigideira como instrumento solo na bateria, com divisão rítmica e técnica muito parecida com o tamborim, no que se refere à forma de tocar. Cabe observar que por conta do cabo da frigideira, aparentemente a performance torna-se mais confortável, vide o exemplo no link.

Mestre Jorjão: fez historia com sua "Bateria Funk"
Na esteira de inovação e sucesso de Mestre André vem também Mestre Jorjão, que incorpora a batida do Funk carioca, ampliando o sentido do termo “paradinha”. Agora, essa denominação diz respeito às alterações que alteram o ritmo contínuo da bateria durante o percurso. Tal inovação de Mestre Jorjão mostrou-se fundamental para que a Unidos do Viradouro conquistasse seu único campeonato no grupo de elite das escolas de samba do Rio de Janeiro em 1997. 

Esse imenso coração pulsante que, por exigência regulamentar, deve reunir minimamente 150 componentes, apenas reflete de forma fidedigna o imaginário cultural de uma comunidade, se tiver em si a superação como meta. Considerando que o carnaval não se restringe, logicamente, ao momento dos desfiles, devemos estar atentos aos novos sinais, de modo que pequenos detalhes, capazes de fazer história, não passem despercebidos. É tomarmos o passado como referência do que somos, sem medo de acompanhar de forma coerente a sociedade em que vivemos, com nossos sons e a velocidade do mundo moderno. Nesse sentido, a bateria torna-se um reflexo de nosso tempo, deixando às gerações futuras um fiel retrato do processo evolutivo pelo qual passam as batidas de cada coração e a mente fértil de cada carioca. 

Diretor de bateria: inovação necessária

Se considerarmos que uma bateria do Grupo  Especial do Rio de Janeiro pode ser maior que uma agremiação nos anos 70, veremos a dificuldade que existe em gerir um grupo tão grande e diverso de pessoas e instrumentos sonoros. É exatamente como gestor que alguns novos mestres de bateria encaram sua função, como é o caso de Ricardinho da Tuiuti, que encara com responsabilidade seu papel de líder entre figuras fundamentais para o sucesso de sua bateria:


“Vários diretores, inclusive, já são mestres de bateria em outras escolas. Então, o trabalho que a gente faz aqui acaba servindo pra eles também, onde aprendem as coisas num lugar maior. Onde a fogueira de vaidades é maior. O importante é dar todo o suporte e toda a valorização pra que cada um consiga tirar proveito e aprenda coisas pra aplicar nos seus trabalhos. Até mesmo me observando, que sou um pouco mais velho, em questão de liderança, de gestão. Sempre que possível estou presente e procurando prestigiar. No desfile eu estou lá pra dar aquela orientada. Eles sentem mais segurança por estar com uma pessoa mais experiente do lado.”

A função do diretor de bateria é hoje inteiramente operacional, no sentido de transferir a cada componente o sentido de unidade, necessário ao conjunto , em uma bateria nos moldes de uma agremiação que disputa seu lugar entre as grandes. Cabe observar também que é exatamente essa partilha de liderança o leva  qualidade às baterias de agremiações nos grupos de acesso, no sentido que muitos dos diretores coordenadores de naipe (grupos de instrumentos) são mestres em escolas que não pertencem ao grupo especial, elevando assim a qualidade e o nível técnico dessas aterias.
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Referências:
As paradinhas: http://www2.sidneyrezende.com/noticia/113801/?p=1

Dicionário Cravo Albin, disponível em: http://dicionariompb.com.br/

LIESA, Manual do Julgador. LIESA, carnaval / 2017;

LOPES, Nei. Dicionário da História Social do Samba, Companhia das Letras, 2015

______, Regulamento Específico dos Desfiles das Escolas de samba do Grupo Especial da LIESA, Carnaval / 2018

Mestrinel, Francisco de Assis Santana. A Batucada da Nenê de Vila Matilde: formação e transformação de uma bateria de escola de samba paulistana. / Francisco de Assis Santana Mestrinel. – Campinas, SP: [s.n.], 2009 .  



quarta-feira, 26 de junho de 2019

SÓ PRA ENCHER O SACO? Abrindo debate sobre o fim do uso de sacolas plásticas


Entra em vigor hoje, segundo o que prevê seu texto publicado, a Lei nº 8006 de 25 de junho de 2018. Sua finalidade e estabelecer limites na distribuição e uso de sacolas plásticas em todo estado do Rio de Janeiro. Esse dispositivo legal vem alterar a Lei 5.502, de 15 de julho de 2009, de autoria do Dep. Carlos Minc, texto esse que já havia recebido emenda em abril de 2015 pelo mesmo deputado. Segundo o parlamentar essa medida “aperfeiçoa dispositivos previstos na Lei” de 2009. O único nó aqui diz respeito à justificativa dada por Minc, no que se refere ao período de um ano, de modo a produzir nesse curto período, uma “mudança de comportamento”.

Qualquer pessoa que lida com políticas públicas sabe que qualquer mudança de mentalidade ou de cultura passa por um processo lento e participativo, em qualquer sociedade. Se olharmos com atenção para os lugares por onde passamos, veremos que nossa relação com o lixo não é algo linear entre as diversas localidades urbanas, daí a controvérsia nas opiniões relacionadas às já criminalizadas sacolas plásticas, distribuídas no comércio. Controvérsia essa que se percebe de forma mais latente nas camadas menos favorecida da população, diferente do que ocorre no legislativo e entre ambientalistas.

É claro que ainda é comum, sobretudo em período de chuvas intensas, ver uma grande quantidade garrafas e sacolas de ligo entupindo rios e córregos. No entanto, é importante observar que o simples ato de acondicionar lixo em sacolas plásticas já apresenta uma predisposição da população ao cuidado com o lixo domiciliar, carecendo uma maior atuação das prefeituras no que diz respeito à educação ambiental e eficiência dos mecanismos de controle coleta do lixo urbano.

No Brasil, cerca de 1,5 milhão de sacolas são distribuídas por hora. Paralelo a isso temos a dificuldade dos municípios em lidar com o lixo, levando a população, sobre tudo a de baixa renda, a buscar soluções práticas, e é aí que a sacola plástica literalmente entra na vida da maioria da população. O fato é que hoje as sacolas plásticas estão diretamente ligadas à vida de quem tem poucos recursos financeiros. Seja para guardar objetos do lar, substituir a luva em tarefas domésticas e até servir de matéria prima para artesanato, essas embalagens não são necessariamente vistos como um risco em potencial, sob a ótica do povão.
Na foto, morador se queixam do recolhimento do lixo em Caxias (Foto:G1, maio d de 2011)


Quando aponto para uma atenção especial às práticas educativas na base da sociedade, levo em consideração uma solução encontrada por essa mesma base social. O Polietileno Tereftalato - PET, que durante muitos anos foi visto como vilão por ambientalistas, hoje movimenta uma economia importante, tanto na indústria de recicláveis quanto para a os mais pobres, que buscam uma fonte alternativa de renda. Basta observar que a reciclagem dos 18,8% de PET produzidas pela indústria em 1994 saltou para 47% em 2005, com progressão similar nos anos posteriores. Ou seja, o fato da reciclagem produzir em longo prazo uma relação direta entre consumo, lixo e geração de renda, contribuiu significativamente para aquelas garrafas plásticas deixassem de ser um problema ainda mais grave ao meio ambiente.

No entanto, quando o assunto é o recolhimento de resíduos, aí o assunto fica ainda mais complicado. A região da Baixada Fluminense pode servir de exemplo para o binômio cidadão/governo, em relação ao uso de sacolas plásticas para acondicionamento e posterior recolhimento de resíduos. As mídias trazem periodicamente matérias relacionadas tanto à precária continuidade quanto a eficiente coleta do lixo. Fator agravado por conta dos constantes problemas relacionados a licitação para o recolhimento do lixo urbano, bem como em relação aos locais de despejo, que constantemente sofrem ações restritivas. Ou seja, a questão aqui não é em relação ao mau uso das sacolas plásticas por parte da população, mas em relação a ineficiência dos gestores municipais em recolher o lixo domiciliar.
 Já no Senado Federal, surgiram duas iniciativas importantes no sentido de apontar para um limite no uso de sacolas plásticas em âmbito nacional, através dos Projetos de Lei do Senado - PLSs 322/2011 e 439/2012. Segundo consta do site daquela casa legislativa,

“O primeiro projeto proíbe a utilização, fabricação, importação, comercialização e distribuição de qualquer sacola que tenha polietileno, propileno e polipropileno na composição. Já o segundo, criado por estudante que integrou o Projeto Jovem Senador, prevê a substituição nos estabelecimentos comerciais das sacolas plásticas comuns por sacolas reutilizáveis, confeccionadas em material reciclável e resistente ao uso, num prazo de cinco anos.”

O que vemos, a partir de tais iniciativas, é que existem medidas propostas a nível nacional, no objetivo de limitar o uso de sacolas plásticas. Porém, se a ideia é produzir uma real mudança de mentalidade e a adoção de outra cultura em relação a produção e descarte de resíduos, é necessário uma maior aproximação entre poder público e sociedade, como mostra  Luiz Beltrão, consultor da área de meio ambiente do Senado:  
“existem três tipos de políticas adotadas para mudar um hábito. A primeira delas é a política de comando e controle, por exemplo, leis que preveem multas e fiscalização, como as que terão origem a partir dos projetos do Senado. Um segundo tipo de política é a da medida econômica, como a cobrança das sacolas plásticas, o que impacta no bolso do consumidor, obrigando-o a repensar o uso das sacolas. O terceiro tipo são as políticas educativas: campanhas institucionais, mensagens e placas no mercado, propagandas na televisão e, acima de tudo, educação nas escolas.”

Os “banheiros voadores” do Quênia
Nesse país africano foi de fato necessária uma atitude firma por parte do governo, por conta das precárias condições de saneamento nas residências, a grande produção e consumo de sacolas plásticas, além das constantes saídas desesperadas, encontradas pela população mais pobre daquele país. Eram chamados de “banheiros voadores” o ato de defecar em sacolas plásticas e lançar nos telhados precários, ação que nem sempre era bem sucedida, deixando claras as consequências entre vizinhos e moradores do entorno do lançador de dejetos ensacados. Essa prática comum no país levou o governo a tomar uma medida radical, que publicou uma legislação que pune com pesadas multas e até reclusão os fabricantes e comerciantes de sacolas plásticas. 
Literalmente todos se queixaram do prazo de um ano para que a medida entrasse em vigor. Ainda assim, foi através do comércio local que se iniciou uma campanha de adoção de formas alternativas de transportar mercadorias. Hoje aquele país africano irradia tal ideia a outros países, como Uganda, Tanzânia, Burundi e Sudão do Sul.

Três nos depois, colou ou não a Lei da Sacola
Foi uma pesada campanha que se estabelecei no Brasil, no que se refere à criminalização das sacola plásticas. Muita mídia sobre o ema, com destaque em telejornais e programas de entretenimento na TV aberta buscando convencer a grande massa a população quanto a relevância de uma iniciativa como essa. Porém o que vemos hoje, pouco mais de dois anos após a publicação da Lei nº 8006 de 25 de junho de 2018,  é o clima e normalidade entre consumidores e uma forma a mais de gerar renda aos mercados. 
  
Anúncio disponível em rede de supermercados e outubro de 2021

O fato é que as sacolas plásticas permanecem em sua tradicional condição de matéria prima para a higiene das residências, sobretudo as de baixa renda. Assim, abrir mão da úteis sacolinhas de mercado redunda em viabilizar alternativa que pese no já complicado orçamento familiar. para além disso, há respaldo legal para que os mercados cobrem pelas sacolas fornecidas, a preço de custo que, à época era de R$0,08 centavos e R$0,20 centavos atualmente. Então, o que percebemos nesses dois anos de uma legislação que deveria contribuir com a saúde pública, é que as redes de supermercados receberam, na verdade, uma mãozinha do poder público para    diminuir custos. Quanto a inciativa educativa da lei, serviu na prática para agregar valor às sacolas, no que se refere ao uso doméstico dessas embalagens, no sentido que, ninguém, sobretudo os mais pobres, detestam a ideia de estar jogando dinheiro fora.           
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Referências:



terça-feira, 2 de abril de 2019

EDUCAÇÃO DOMICILIAR - HOMESCHOOLING – ANTI-COMUNISMO OU DESMONTE DA EDUCAÇÃO FORMAL

“Espero que os vossos netos hão-de viver numa ilha
onde já não será necessário ir à escola como hoje [é] ir à missa
Ivan Illich



Nobreza: educação tutelada
(imagem, autor desconhecido)


Nessa quarta-feira, 18 de maio de 2022, a Càmara dos Deputados aprovou o texto base que altera a Lei de Diretizes e Bases da Educação-LDB, possibilitando a regulamentação do ensinodomiciar no Brasil, em todo Ensino Básco, que compreende a pré-escola, ensino funamental e médio. Essa proposta é um dos pilares ideológicos do atual presidente, que baseia a proposta às constantes "ameças comunistas" na comunidade escolar. o Fato é que o período de isolamento social e o decorrente ensino à distância nos mostraram o mar e desiguardade, desinformação e precariedade no ensino, que percebemos hoje. Ignorando os riscos que tal medida pode causar, o texto base da proposta foi apresentado em Regime de Urgência, evitando assim o necessário debate nas comissões, ficando para essa quinta-feira (19) a discussão em plenário, antes do envio do texto para o Senado.
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As origens e o uso dessa proposta
Já houve tempos em que famílias brasileiras abastadas faziam de suas casas verdadeiros centros culturais. Os antigos barões do café por exemplo, realizavam saraus e grandes recepções, de modo a mostrar o nível “cultural” de suas filhas, que estudavam, com o auxílios de professores particulares,  longas peças musicais ao piano ou recitavam sonetos, que demonstravam o elevado nível de conhecimento estético adquirido. De igual modo essas meninas estudavam etiqueta, Latim e caligrafia, visando aprimorar e direcionar sua inteligência, sem perder de vista o modo sóbrio e comedido delas requerido.  O objetivo era elevar-lhes os dotes, a padrões aceitáveis às belas e comportadas damas da época. Para além disso tal postura possibilitava que fossem dignas de seu nível social e riqueza, com os quais deveriam se portar diante da sociedade e, logicamente, diante de seus futuros maridos. Para tanto, essas jovens contavam com uma tutoria específica em suas casas, não recorrendo assim à educação pública, quando essa existia à sua volta.  

Nos EUA o histórico do modelo familiar de educação tem proximidade com princípios doutrinários das igrejas adventistas dos estado do Sul, se alastrando pelo país em uma curva acentuada nas últimas décadas. Estudos naquele país apontam para um crescimento de cerca de 1% na década de 90 para 3,8% em 2010, no número de famílias que adotam o homeschooling como modelo educacional. São aproximadamente dois milhões de crianças inseridas nesse modelo, o que leva muitos estados a rever periodicamente seu modelo de educação pública e privada, de modo a atender de forma legal esse público. O principal elemento motivador do modelo de educação domiciliar nos Estados Unidos surge entre os anos 60 e 70, quando Esquerda e Direita se acusam mutuamente de utilização ideológica da educação. Uma crítica feito por autores daquele país aponta para um enfrentamento voltado à uma disputa hegemônica, além de contribuir para uma educação capitalista.

Segundo estudos já feitos, no Brasil esse número gira em torno de 700 famílias, com duas condenações judiciais de “abandono intelectual”(1). O caso de maior repercussão é o do empresário mineiro Cleber Nunes, que optou por educar os dois filhos mais velhos em casa, acarretando um longo processo judicial. Em decorrência disso Cleber criou a  Associação Nacional de Educação Domiciliar (ANED), entidade que visa propagar o ideário da educação domiciliar no Brasil. Outros movimentos sociais como a Aliança Nacional para Proteção à Liberdade de Instruir e Aprender (Anplia), se dedicam à difusão de um modelo que circula entre dois princípios. No primeiro os  conteúdos e avaliações educacionais pelos pais, e no segundo, o conteúdo fica a cargo dos pais enquanto à escola cabe os processos avaliativos.

Muitas décadas à frente, corroborado pelo governo Bolsonaro, está de volta um debate que circunda aquele modelo de educação domiciliar no Brasil. A educação em casa retorna à pauta na sociedade, em um momento singular, onde as políticas públicas têm cedido lugar à convicções doutrinárias e fundamentalistas, desconsiderando um histórico de debates sociais, acadêmicos e legislativos sobre o tema, há pelo menos 25 anos. Tomando como base o estudo feito em 2002 por Emile Boudens intitulado “Ensino em casa no Brasil”, veremos que há nos dias de hoje um vazio teórico nas discussões sobre esse tema, desconsiderando fatos já ocorridos em nosso país, além de amplo debate ocorrido no Congresso Nacional, que refuta tanto a viabilidade quanto a relevância da implementação desse modelo no conjunto de ações de governo, no campo da Educação.

Meninas Malvadas: filme que discute o homeschooling nos EUA

Em relação ao texto citado e suas ponderações frente aos atuais fatores e motivações, é possível ponderar também que, em primeiro lugar, o que vemos hoje é um conjunto de apelos doutrinários, sempre em depreciação à escola enquanto instituição. A visão do governo Bolsonaro deixa em aberto, entre outras contradições, se as atuais motivações dizem respeito à qualidade ou o conteúdo do que é ensinado. Cabe também ponderar a capacidade dos pais em oferecer uma educação básica de qualidade à seus filhos e a que tempo, considerando que a dedicação necessária ao ensino fatalmente redunda em retirada de um dos membros responsáveis, do mercado de trabalho. Paralelo a isso, cabe um questionamento quanto a quem é atribuída a responsabilidade legal pelo ensino formal, levando em conta que a LDB atribui ao Estado o dever de garantir a educação, facultando tal atribuição a instituições privadas de ensino, à quem também são atribuídas responsabilidades legais. Cabe também observar que nenhum dos dispositivos legais em vigor hoje, possibilita delegar à família o direito de arcar com a educação formal de seus filhos. Pelo contrário, a família é, na realidade, responsabilizada quanto à permanência ou não da criança na educação formal, segundo o parecer do citado estudo, encomendado pelo Congresso Nacional.



Damares, a família e a educação

Damares: auto-intitulada, registro na OAB, cassado (foto:Veja)

Ainda que o tema tenha diretamente haver com políticas públicas de Educação, é a Ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos Damares Alves quem defende de forma acalorada a questão da implementação da educação domiciliar no Brasil. A ministra se autodeclara Mestre em Direito Constitucional e Direito de Família. Buscando justificar a origem de tais títulos, é na bíblia  que Damares se apoia, referindo-se ao texto em Efésios 4:11, onde se lê que  "Ele [Deus] designou alguns para apóstolos, outros para profetas, outros para evangelistas e outros para pastores e mestres". Cabe observar que Damares graduou em direito na Faculdades Integradas de São Carlos, instituição essa que foi descredenciada pelo MEC em 2011. Hoje Damares Alves está com seu registro na OAB cassado pela entidade(2).


Alegando que a educação domiciliar possibilita aos pais aplicar mais conteúdos que a escola, a ministra diz que a matéria será implementada via Medida Provisória, sob a alegação que a discussão levantada há tempos, ainda está em aberto, cabendo assim a retomada dessa discussão. Em matéria do dia 25 de janeiro desse ano, publicada no  site G1, a ministra, alega que existe um número bastante grande de famílias que adotam o modelo de ensino domiciliar. Todavia, segundo André Vieira (2012), que abordou essa temática no TCC de sua graduação pela Universidade Federal de Brasília, existem aproximadamente 400 famílias que adotam o homeschooling como modelo. Esses dados foram, segundo o autor, levantados pela Associação Nacional de Educação Domiciliar (ANED), entidade que serve como base para traçar o perfil das famílias que educam seus filhos em casa.

Com um perfil muito parecido ao modelo norte-americano, o grupo de aproximadamente de 400 famílias brasileiras que adotam o modelo de educação domiciliar, basicamente é formada por brancos de classe média, protestantes, fundamentalmente com maridos provedores e mães dedicadas exclusivamente ao lar. Nesse sentido as motivações são as de proteção dos filhos em relação às práticas de uma sociedade tida como "mundana", com seus valores deturpados, em comparação com determinadas doutrinas protestantes. De acordo com as críticas da Ministra Damares Alves, ideias como a denominada “ideologia de gênero” e a abordagem de questões ligadas à sexualidade, o homeschooling no Brasil traça um estreito paralelo com o modelo adotado nos EUA, no que diz respeito ao ponto de vista da comunidade evangélica mais radical, em relação à educação escolar. Outra motivação que surge entre famílias dos EUA e que tem paralelo com o que é discutido entre nós brasileiros e que não é prioridade no conjunto de justificativas da camada protestante que adota o homeschooling, é a questão da qualidade do ensino. Em particular, no caso brasileiro, no que se refere à crianças especiais, que requerem uma especial atenção.

Intromissão do Estado?

O teólogo e filósofo austríaco Ivan Illich, que defendia a ideia de “desescolarização da sociedade”, entendia que sim. Para ele a escola deveria ser acessada por quem deseja um conhecimento específico, devendo ser um espaço de livre acesso a que assim desejar. Há de fato casos em que a escola não oferece as condições ideais de aprendizado, como na Educação Rural unidocente, geralmente distante geograficamente dos alunos que, inclusive, dedicam longos períodos do ano, à lavoura. Do mesmo modo, o ensino à distância, acessado inclusive por estudantes defasados na relação idade/série, é a saída sobretudo para  adultos, impedidos de acessar a escola no período adequado de suas vidas, por motivos diversos. Nesse caso há que se compreender a necessidade real de flexibilização desse espaço de concentração de saber, à pessoas que vivem realidades sociais distintas e que, de igual modo, fazem jus à uma educação que lhes contemple. Todavia, há um conjunto de argumentos que refutam a necessidade de que seja criado um sistema paralelo de ensino, com a justificativa de possibilitar uma espécie de libertação didática do estudante.

Por outro lado, a ideia de “intromissão” do Estado na educação desejada pelos pais a seus filhos fere, na verdade, uma legislação que vê a educação como um dever do Estado e um direito da criança/adolescente. No Brasil de hoje vemos como particularidade um elevado nível e influência fundamentalista, motivando a opção feita pelas famílias envolvidas no homeschooling. No relato de Vieira em relação a esse tema, podemos ver o seguinte:

se as famílias abastadas do século XIX buscavam imitar a nobreza e a realeza de França e Inglaterra, as atuais famílias de classe média que educam em casa inspiram-se, sobretudo, em casos norteamericanos. A maioria delas, estima-se, é cristã – à maneira do que acontece nos Estados Unidos – e as que adotam a modalidade há mais tempo (desde meados da década de 1990), conheceram-na, em geral, por meio de líderes religiosos evangélicos originados daquele país, em visita ao Brasil ou imigrados.



A atual investida desse governo na fragmentação do modelo constitucional de educação coincide com outro fenômeno, que não tem haver com o educacional mas, com o econômico. O fato é que a educação pública vem sofrendo constantes ataques de grupos tendenciosos, o que podemos atribuir ao investimento maciço da iniciativa privada em em educação, enquanto negócio, além de nossa tendência a aceitar essa visão de que, o que é público é, naturalmente, de baixa qualidade. Se considerarmos que o modelo de educação adotado no Brasil vive em constante estado de observação e revisão, o que ocorre por intermédio de mecanismos de controle técnico e social, entenderemos que há equívocos nas críticas que, em sua maioria, não têm base. Logo, o avanço de tais iniciativas sem embasamento técnico e/ou teórico, podem redundar em um direcionamento da educação pública à instituições consideradas "adequadas", além da possibilidade de maior flexibilização das relações de trabalho, em relação ao professor.

Muitos pontos de vista que corroboram a ideia de educação pública se baseiam no raciocínio que compara a realidade da educação domiciliar à da educação no campo que, em muitos casos, é unidocente, limitando assim a eficácia de um ensino devidamente aprofundado. Tal argumento ganha mais força quando analisados os casos de famílias com mais de um filho, sobretudo quando esses têm idades menos aproximadas, o que obriga os pais a um malabarismo didático ainda maior. É por esse motivo que o Estatuto da criança e do Adolescente (Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990), estabelece, nos capítulos 56 e 55 que os pais têm obrigação de matricular seus filhos na rede regular de ensino, visando ao pleno desenvolvimento de sua pessoa, preparo para o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho”.



A educação deve então fazer parte do processo formativo da criança, que passa, evidentemente, pela família, mas também envolve o desenvolvimento e aprofundamento das relações sociais, apontando também à uma formação para o trabalho o mais abrangente possível, no que tange ao ser adulto em sociedade.



O que vemos então é a exacerbação do fundamentalismo no Brasil, a partir da tomada de poder de uma camada social que vê as estruturas democráticas como empecilho para seus fins. A aproximação do Brasil junto ao governo Norte-Americano e, em paralelo a isso, também à suas estruturas ideológicas, ainda que esse governo diga ser avesso à isso, acaba deixando bem claro que há um projeto de tomada poder em curso. Vemos hoje uma acentuação do desmonte do pacto democrático estabelecido pela Constituição de 1988, na qual o Estado é colocado à serviço do povo. Nossa Carta Magna, que vem sofrendo desmontes praticamente após o dia seguinte à sua promulgação, tem, no capítulo voltado à Educação, sofrido um dos ataques mais ferozes, o que causa risco à formação intelectual e cidadã de nosso povo. Defender a educação pública, diferente do que extremistas religiosos e economistas apoiadores da ideia de Estado Mínimo buscam, não é horizontalizar de forma pasteurizada o aprender e o ensinar mas, significa democratizar oportunizar, inclusive a partir da cultura que cada região demanda.

Referências:

  • (1) VIEIRA, André de Holanda Padilha, “ESCOLA? NÃO, OBRIGADO”: Um retrato da homeschooling no Brasil, Brasilia, 2012 - disponível em: http://bdm.unb.br/handle/10483/3946
  • (2) Biografia e entrevista de Damares Alves
    https://pt.wikipedia.org/wiki/Damares_Alves
    https://g1.globo.com/politica/blog/andreia-sadi/post/2019/01/25/damares-educacao-domiciliar-permite-a-pais-ensinar-mais-conteudo-e-gerenciar-aprendizado.ghtml


  • Boudens, Emile. Ensino em Casa no Brasil. Câmara dos Deputados, 2002;


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