Status: não só o lugar, mas também a postura e o discurso |
Hoje,
diferente de décadas passadas, quando iniciei minha militância
política no campo da cultura, tenho condições de entender o motivo pelo qual algumas pessoas
de origem igual à minha ascender social e juntamente com ascensão adotam uma mentalidade conservadora. Tive acesso há alguns anos a uma
fonte documental do início do Século XIX em Campos do Goytacazes, que
relata a queixa de uma mulher junto a justiça, no qual essa acusa um
escravo seu, de roubo. Olhando mais a fundo, percebi que essa mulher
era uma ex-escrava, que recebeu terras e tantos outros bens como herança
e entre esses bens, escravos.
O que historiadores desse campo de
pesquisa defendem é que um ex-escravo que pretende ocupar seu lugar na
casta social dos grandes proprietários e notórios produtores e donos de
engenho, é que um conjunto de práticas e convicções deve ser acompanhado
de seu respectivo discurso.
Ou seja, a partir da mudança de status social, a quem vive tal condição de ascensão não só é possível mudar o discurso, como também entende ser necessário pensar como “senhor”. Postura essa tomada com tamanha convicção que sua fala se transforma em verdade pessoal. Aquela ex-escrava portanto, não era, a época, considerada má ou, como no uso do discurso marxista, “o oprimido virou opressor” mas, portadora e usufrutuária de direitos socialmente culturalmente. O fato é que agora, as motivações, ideias e necessidades eram outras. Os republicanos que faziam enfrentamento à monarquia não eram necessariamente abolicionistas. Em grande parte, apenas pleiteavam o alternância de poder, fato comum na América do Norte e Europa e tão em voga no Brasil de hoje.
Ou seja, a partir da mudança de status social, a quem vive tal condição de ascensão não só é possível mudar o discurso, como também entende ser necessário pensar como “senhor”. Postura essa tomada com tamanha convicção que sua fala se transforma em verdade pessoal. Aquela ex-escrava portanto, não era, a época, considerada má ou, como no uso do discurso marxista, “o oprimido virou opressor” mas, portadora e usufrutuária de direitos socialmente culturalmente. O fato é que agora, as motivações, ideias e necessidades eram outras. Os republicanos que faziam enfrentamento à monarquia não eram necessariamente abolicionistas. Em grande parte, apenas pleiteavam o alternância de poder, fato comum na América do Norte e Europa e tão em voga no Brasil de hoje.
O exemplo de Monteiro Lopes
Antes de efetivamente falar sobre aquele que foi o primeiro deputado assumidamente "preto" a ocupar (a duras penas, por conta das resistências à época) uma cadeira na Câmara dos Deputados em 1909, quero, como analogia, comentar um fato paralelo, ocorrido exatamente 110 anos após, no plenário da Câmara dos Deputados em Brasilia. Cabe ressaltar que a figura a seguir tem, em relação à Montero Lopes, três fatores inescusáveis. Um mandato parlamentar, a adequação de seu discurso à ética de seu meio e sua irrefutável negritude.
Antes de efetivamente falar sobre aquele que foi o primeiro deputado assumidamente "preto" a ocupar (a duras penas, por conta das resistências à época) uma cadeira na Câmara dos Deputados em 1909, quero, como analogia, comentar um fato paralelo, ocorrido exatamente 110 anos após, no plenário da Câmara dos Deputados em Brasilia. Cabe ressaltar que a figura a seguir tem, em relação à Montero Lopes, três fatores inescusáveis. Um mandato parlamentar, a adequação de seu discurso à ética de seu meio e sua irrefutável negritude.
Na charge de Rocha, Monteiro Lopes é comparado a um papagaio preto por seu apoio ao discurso de Rui Barbosa - dura crítica de O MALHO |
O autodenominado Deputado Helio Bolsonaro fez, em seu primeiro discurso no parlamento, uma declaração emblemática, referindo-se ao presidente eleito: "Eu sei que ele é branco, sim, eu sou preto. Sou daltônico. Não exergo diferenças. A minha cor é o Brasil". Essa declaração reflete a importância do lugar a ser ocupado, em detrimento de fatores sociais, hierárquicos, étnicos ou econômico que o postulante traga em sua jornada pessoal. Quero assim utilizar figuras públicas negras com o objetivo ilustrar minha linha de raciocínio, haja vista haja vista que, buscando desconstruir tanto o senso comum de que "o negro é mais preconceituoso que o branco", quanto mostrar que, na sociedade, a ocupação dos espaços de poder se em paralelo à adoção de um discurso inerente ao grupo. Essa é então uma postura que se alinha ao desejo de aceitação diante da sociedade, ou mesmo diante de uma conjuntora que emerge, cabendo ao postulante à essa ou aquela atribuição, adequar-se, caso queira ser visto como alguém digno do meio.
Storni retrata o resultado da corrida eleitora: Monteiro Lopes, o 4º mais votado à Câmara Federal |
Voltado então ao início desse ponto, vemos através de muitas fontes que Manoel da Motta Monteiro Lopes, além deputado federal eleito em 1909, também foi intelectual, advogado, militante da liberdade plena dos negros e membro de irmandades abolicionistas. Juntamente com Lopes Trovão e Silva Jardim, jovens intelectuais brancos da então Capital da República, esses republicanos traziam à República o discurso pioneiro em favor do "povo". Devemos, no entanto, considerar que à época, os meros vinte e um anos de abolição não foram capazes de romper com um conjunto de figuras de linguagens que atreladas à negritude como algo pejorativo. Vemos que lhe é atribuido um discurso, por ocasião das comemorações do 13 de maio, no qual o então parlamentar faz uso de uma linguagem que, nos dias de hoje, estaria politicamente incorreta:
"Hontem eramos sim: um borrão preto
manchava o auri-verde pendão! chegamos a ficar quasi assim: a ver amortalhadas
as nossas liberdades políticas na eternidade das instituições monarchistas!
Hoje estamos assim, graças à república: tudo dansa o maxixe da
confraternização, à sombra da nova bandeira em que a branca aurora do presente
destacando-se da sombra negra do passado, mostra a orientação democrática do
futuro! Senhores! A minha voz é a corporificação d’essa democracia!" (O MALHO,
1909, edição 248)
Texto que a revista atribuiu ao parlamentar à época
Há, de antemão, a necessidade de evitar anacronismos, no sentido que à época sua postura foi vista como correta diante dos demais negros de seu tempo, fossem eles intelectuais ou não, de modo que os enfrentamentos decorrentes de sua visibilidade não eram a ele atribuídos. Ainda assim, sua aceitação diante da sociedade estava também diretamente ligada a uma postura e discursos condizentes com a cultura de seu momento histórico, postura essa ditada pela camada dominante da época, à qual ele também agora pertencia. Vejamos que esse "lider dos pretos", como chegou a ser identificado por jornais da época de sua eleição, atribuía o 13 de maio à atuação ostensiva das irmandades negras, do investimento financeiro e intelectual dos republicanos abolicionistas e da atuação resistente de negros escravizados. Na condição de liberto o negro buscava então legitimação de sua condição na sociedade, o que também passa necessariamente pela adoção de uma estética urbana e classista, vide a imagem e o discurso ilustrado a baixo:
Arte do chargista Raul, retratando diálogo de dois negros, abordando a postura da sociedade em relação a Monteiro Lopes |
Mesmo vindo de Recife na virada do século com um currículo bastante expressivo e tendo ocupando cargos públicos já em 1903, o que vemos à época é uma postura discriminatória por parte da camada abastada da sociedade, que exerceu pressão sobre o parlamento, de modo a barrar a assunção do mandato do deputado eleito. O termo "preto retinto", comumente utilizado pelos jornais e revistas à época, demonstra que o fator de discriminação estava voltado à acentuada negritude, tendo em vista que, segundo o próprio Monteiro Lopes, já existia caso de parlamentar "preto" que vivia privilégios de brancos, como no caso do deputado Eloi Castriciano de Souza, do Rio Grande do Norte, citado na charge de Léo, no Jornal O Malho de setembro de 2010.
O então parlamentar é acusado de fazer uso do mandato para fins de "recreio", ao que Monteiro Lopes refuta, citando exemplo de outro "preto" não citado nas críticas |
Em contrapartida vemos uma postura protecionista por parte dos políticos à época, no sentido de tirar de seus ombros qualquer vestígio de uma postura anti-republicana e anti-democrática, além de buscar evitar que a pessoa da Princesa Isabel tenha nessa questão algum lampejo de exaltação à sua pessoa. Logo, defender o mandato de Monteiro Lopes teria um caráter político e não social e democrático, ditante do parlamento e da intelectualidade republicana.
Rocha retrata Monteiro Lopes, argumentando com Rui Barbosa quanto a legitimidade e defesa de seu mandato. Ao fundo, Rio Branco, perseguidor contumaz de Monteiro Lopes |
Ao assumir seu mandato, após equacionadas as questões políticas, o deputado assume não apenas sua cadeira, mas também uma postura que acaba por interferir em outros atores sociais, através de um discurso inegavelmente estético. Está dado então o fato de que, a partir de então, a figura do negro ultrapassa a barreira da capacidade intelectual, interferindo também na política mas, nos moldes do discurso e da imagem devida à intelectualidade hegemônica daquele momento.
Leonidas descreve a dubiedade: atitudes afirmativas, com discurso estético tradicionalmente da elite |
Poderia citar aqui uma série de outros exemplos históricos e contemporâneos, de modo a corroborar meu raciocínio quanto a quem fala o quê, a partir do lugar onde está. No entanto, não vejo o mesmo discurso na fala de alguns figuras próximas a mim ou demais brasileiros de afirmações idênticas aos que citei. Noto sim uma verdade social absorvida, seguida de um conjunto de justificativas, necessária à ocupação do justo lugar onde essas figuras estão. Ou seja, a falta de confrontação com a realidade que se vive, diz respeito a acomodação ou não de cada, em relação à zona de conforto na qual está alocado. Isso, se considerarmos que muitos que superam barreiras culturais, étnicas ou econômicas, ascendendo socialmente, geralmente o fazem à duras penas, através de anos de estudo e esforço concentrado, o que para muitos é justificativa plausível para adoção de um discurso ou postura condizente à esse lugar. É claro que tais conquistas são fruto dos avanços e possibilidades conquistados ao longo de década de luta e suor de muitos, que adquiriram consciência de sua importância para as gerações futuras.
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Leia pra ilustrar esse raciocínio:
CORREIA & GRINDBERG. Chica da Silva e o contratador de diamantes: o outro lado do mito , Jorge Zahar, 2005;
Deputado Helio Bolsonaro: primeiro discurso no parlatório da Câmara dos Deputados em Brasilia. Vide Youtube;
MANOEL, Carolina Vianna Dantas. Manoel da Motta Monteiro Lopes, um deputado negro na I República, Programa Nacional de Apoio à Pesquisa, Fundação Biblioteca Nacional - MinC, 2008;
Revista O Malho, ilustrações extraídas de edições dos anos 1909 à 1910 (acervo: Fundação Casa de Rui Barbosa)