terça-feira, 5 de abril de 2022

31 DE MARÇO OU PRIMEIRO DE ABRIL? Memes e fake News, no início da Ditadura de 1964

Charge de Henfil: criatividade contundente


Esse texto foi publicado inicialmente em 31 de março no site Vozes de Mesquita. Estou replicando aqui para registro no blog, de modo a amplificar o alcance dessa discussão que mostra a importancia da resistencia ao regime ditatorial brasileiro, que se deu entre 1964 e 1995, com o uso de arte e muito humor no conteúdo das informações e notícias para além dos canais de comunicação aliados ao golpe militar.
 
Se existem duas peculiaridades no que diz respeito a comunicação informal para o povo em geral é a capacidade de proliferar notícias falsas e fazer piada com coisa séria. Com câmeras fotográficas, aplicativos de edição de áudio e vídeo e acesso gratuito a canais digitais, todo brasileiro portador de um smatphone pode divulgar uma ideia à seu bel prazer com poucas consequências negativas para si. O fato é que a proliferação de notícias falsas e essa pródiga capacidade de fazer piada jocosa em relação a fatos políticos não é de agora. Quem dá alguma atenção à nosso história recente consegue facilmente levantar fatos capazes de reafirmar que nosso povo de fato é, acima de tudo, extremamente criativo, o que não nos exime de cairmos nas próprias ciladas, no que se refere à comunicação popular com matérias tendenciosas de caráter “chapa branca”, nome dado a tudo que é de fonte oficial. Quando olhamos as sementes plantadas há mais de meio século pelos EUA no período da Guerra Fria referente a informação, veremos que fomos alvos fáceis para o que se tornou o estado de coisas que culminou com o golpe civil/militar de 64. 

Quem nunca ouviu a máxima “nos tempos da ditadura isso não era assim” ? Quem então desdenhava ou achava graça desse tipo afirmação viveu pra ver o nível de repressão a ideias de vanguarda e ataque a direitos civis sob os quais vivemos hoje, quando temos mais de seis mil militares em cargos civis, segundo o site RBA (Publicado 18/05/2021). A propaganda feita durante duas décadas de ditadura foi tão eficiente que hoje, mesmo com mais uma centena de denúncias formais no judiciário, há quem ainda defenda o atual estado de coisas. E nos chamados “anos de chumbo”, assim como hoje, não é apenas a propaganda militar que alavancou o movimento armado que surgiu de dentro do Estado brasileiro. Não atoa, quem olha a história desse período classifica hoje aquele levante como uma ditadura civil/militar, considerando a atuante participação e coautoria da camada mais favorecida da sociedade urbana e rural à época. São tantos paralelos em relação ao que temos hoje, que entendi ser relevante levantar alguns pontos, muito peculiares hoje e que têm lastro no que ocorreu naquele tenebroso período de silencio, conivência e, felizmente, bastante resistência. 

Os comunistas, sempre eles! 
A Guerra Fria, como sabemos, tem a ver com a corrida armamentista entre os EUA e o território que compreendia a antiga União Soviética. Desconsiderando aqui nessa abordagem as questões relacionada ao expansionismo territorial russo e estadunidense, além da já conhecida busca por ampliação de mercado consumidor de seus produtos, quero enfocar a eficiente estrutura de convencimento internacional aos interesses dos nossos vizinhos americanos. Logo no início dos anos 50 o senador estadunidense Joseph McCarthy iniciou uma verdadeira campanha anticomunista, a tal ponto de levar parte da população às raias da paranoia. O político, inicialmente por iniciativa própria, passa a incentivar o povo a perseguir os comunistas ou pessoas com ideias que se afinassem com o ideário russo. Não tardou para que tal ideia, conhecida posteriormente como Macartismo, se convertesse a uma maior repressão a negros e seus movimentos de aceitação e melhores condições de acesso à cidadania, por exemplo. O filme Boa Noite, Boa Sorte, de 2005 retrata bem o que foi esse primeiro movimento de uma ópera de terror psicológico no território norte-americano, que só teria paralelo com a chamada Guerra ao Terror, promovida décadas depois, pelo presidente Jorge Bush. 

O jornalista Joremir da Silva publicou em 01 de abril de 2019 no Jornal Correio do Povo uma interessante matéria, na qual ele discorre sobre o ex-presidente João Goulart e o processo que culminou com sua derrubada do poder. Taxado já em 1955 como comunista, Jango foi alvo do que chamaríamos hoje de fake News. O jornalista inclusive mostra um trecho no qual o presidente John Kennedy envia carta à Jango, como era apelidado, com uma posterior resposta ao presidente norte-americano, o que ilustra bem os motivos que o levaram à ser deposto e exilado: 
John Kennedy, em carta de 22 de outubro de 1962, arriscou: “Quero convidar Vossa Excelência para que as suas autoridades militares possam conversar com os meus militares sobre a possibilidade de participação em alguma base apropriada com os Estados Unidos e outras forças do hemisfério em qualquer ação militar que se torne necessária pelo desenvolvimento da situação em Cuba”. Jango respondeu com altivez: “A defesa da autodeterminação dos povos, em sua máxima amplitude, tornou-se o ponto crucial da política externa do Brasil, não apenas por motivo de ordem jurídica, mas por nele vermos o requisito indispensável à preservação da independência e das condições próprias sob as quais se processa a evolução de cada povo”. 

Não há indício algum de que Jango tivesse inclinações ao bloco comunista. Ao contrário, ele, que era um liberal de Direita, também entendia que seria ruim para o desenvolvimento nacional o alinhamento com aliados da União Soviética, considerando seu ideário de avanço econômico nos moldes ocidentais. Joremir Silva ainda completa em seu artigo: 
Teria Jango respondido dessa maneira por nutrir simpatias pelo comunismo e por querer transformar o Brasil numa grande Cuba? Ele tratou de eliminar qualquer dúvida: “O Brasil é um país democrático, em que o povo e governo condenam e repelem o comunismo internacional, mas onde se fazem sentir ainda perigosas pressões reacionárias, que procuram sob o disfarce do anticomunismo defender posições sociais e privilégios econômicos, contrariando desse modo o próprio processo democrático de nossa evolução”. Os Estados Unidos da América veriam nessa manifestação de independência uma clara inclinação ao comunismo. Assim se fez a história. 

O fato é que, ao discordar da proposta de alinhamento com os EUA, em favor da defesa da soberania nacional de todo e qualquer país, Jango se tornou alvo fácil para a sociedade política alinhada com a estratégia de hegemonia estadunidense. Logo, não demorou para que a mídia da época e a parcela mais abastada da sociedade o estigmatizasse como “o presidente que quer instaurar o comunismo no Brasil”. 

Marcha, em resposta ao discurso de Jango



“Deus, pátria e família”, como antigamente 
Algumas pessoas ainda hoje ficam abismadas pela forma como a igreja está estreitamente alinhada com o Estado brasileiro ou ao menos com governos em particular. Quando interesses se alinham, é comum ao redor do Globo que religiões se aproximem de governos auto intitulados conservadores. O que se torna um prato cheio para denominações religiosas que aspiram ascensão e credibilidade junto as massas, como vemos em nosso país. Se observarmos atos políticos fundamentalistas como o PL 4322/2019, que estabelece a bíblia como Patrimônio imaterial brasileiro, entenderemos que a necessidade de aproximação com as estruturas de poder tem na verdade tudo a ver com o projeto de expansionismo religioso, que visa, na verdade, sobrepujar a histórica proximidade com as religiões de matriz africana e estabelecer uma nova hegemonia religiosa no Brasil. Digo nova em consideração à tradicional relação entre a igreja católica romana e os três poderes da União, desde sempre, vide os crucifixos tão comuns em repartições públicas ainda hoje. Não distante dessa realidade, em 13 de março de 1964 Jango faz um ato público onde apresenta um conjunto de propostas e medidas visando o desenvolvimento social e econômico do Brasil. Tamanha foi a campanha contraria ao ato, que eclodiram várias manifestações públicas, sobretudo nas capitais do Rio e de São Paulo, congregando diversas instituições da sociedade civil em favor de ações capazes de resguardar o país de uma ameaça possível comunista, segundo a fala dos manifestantes. A chamada “Marcha da Família com Deus, pela Liberdade”, promovida sobretudo por mulheres com anuência da igreja católica, foi crucial para justificar a derrubada de João Goulart do poder e o efetivo golpe entre a noite de 31 de março e a madrugada do dia 01 de abril. 

A pegadinha do 01 de abril 
Relatórios de militares não deixam dúvidas de que, sim. Em 31de março de 1964, tropas da 4ª Região Militar e da 4ª Divisão de Infantaria, sob o comando do General Olímpio Mourão Filho (sim, eu disse Mourão), já se encontravam em prontidão as 7 da manhã em Juiz de Fora, Minas Gerais, no dia 31. Porém, ao meio dia de 01 de abril Jango ainda se encontrava despachando no Rio, sob a guarda do comando da 1ª Região Militar do Exército e o comando da 3ª Zonas Aérea da Aeronáutica. Houve também no bairro da Cinelândia uma verdadeira batalha das forças militares contra apoiadores de Jango, no fim do dia 01/04, quando efetivamente Jango sai de Brasilia e se refugia no Rio Grande do Sul, já na madrugada do dia 02/04. Ai sim, ratificado o golpe por parte do comando da Junta Militar que tomou o poder. 

 Pasquim: resistencia e informação de forma de deboche 


Eles não tiveram sossego 
Comentei no início que hoje é muito mais fácil de se fazer um meme relacionado a alguma figura pública, por conta da agilidade da internet e os apps à mão de adultos e crianças. Aplicativos como o Telegram, atrás do que se escondem tantas fake News, dificultam o rastreamento de mensagens que não condizem com a verdade em muitos dos casos. Mas não é só de publicações negativas que é feita a mídia popular. Basta uma gafe e, pronto! Mais uma imagem viralizando em pouquíssimo tempo em canais como Youtube ou sendo passada à milhares de pessoas em segundos, através do Watssap. Mas, acho importante imaginar a situação de jornalistas em pleno período de excessão, não alinhados ao regime militar ou mesmo fazendo-lhe oposição, todos com nomes e endereços de conhecimento público, produzindo material facilmente rastreado e confiscado. São inúmeros os casos de jornalistas desaparecidos, sobretudo a partir de 1968 quando foi publicado o Ato Institucional nº5, exatamente no ano em que foi criado o lendário tabloide O Pasquim. 

Contando inicialmente com o cartunista Jaguar e os jornalistas Tarso de Castro e Sergio Cabral (o de verdade), O Pasquim já inicia o ano de 1969 provocando a criação da Censura Prévia de publicações e shows, por conta da entrevista feita a Leila Diniz, com ideias que inclusive já viraram letra de música. Mesmo assim, com toda repressão e severo controle de suas publicações O Pasquim se manteve firme e inspirador durante quase todo o período de ditadura, com sua última publicação datada de fevereiro de 1991. Antes disso tal ato de resistência jocosa ainda agregou outras feras, como Ziraldo, Millor Fernandes, Rui Castro e Henfil. Esse último, imortalizado por suas charges e personagens que ilustram publicações e até camisetas, até hoje. Essa forma criativa de enfrentamento engraçado e criativo foi seguido pelo veículo mais em voga na época. Nesse percurso surgiram programas de TV que não se furtavam a alfinetar os militares e seus aliados, com O Planeta dos Homens de 1977 e Viva o Gordo, com Jô Soares em 1981. 

O Planeta dos Homens: como o jargão "o macaco tá certo" 


Muito já foi falado em relação a memória da resistência nesse controvertido 31 de março, que em nada contribui de fato quando o assunto é questionar se o golpe ocorreu ou não no 01 de abril. Basta lembrar que em 2016 passamos por uma manobra extremamente tendenciosa que depôs Dilma Roussef do poder, com o uso de métodos semelhantes de depreciação da imagem de uma presidência que segue na contramão da macroeconomia e da avareza. Importante aqui é a relevância dos fatos e dos atos, exatamente porque golpe é golpe, seja em que tempo for. 

Leia mais em: https://guiadoestudante.abril.com.br/estudo/5-filmes-para-voce-estudar-a-guerra-fria/ https://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/jango-e-o-comunismo-1.330072 https://blogdomariomagalhaes.blogosfera.uol.com.br/2014/03/30/por-que-a-data-do-golpe-e-1o-de-abril-de-1964-e-nao-31-de-marco-2/?cmpid=copiaecola