Como sabemos, o termo gospel não é nosso. Tem origem nos cantos de trabalho (spirituals) dos negros ainda no período agrário escravocrata estadunidense. Com sua linguagem emotiva, apontando para as dores da discriminação e da escravidão, com muitas analogias com o período do cativeiro judaico e tendo o céu como lugar redenção diante da dura vida dos negros naquele país, o gospel avança como linguagem, influenciando no século XX a música pop daquele país, agora com pouca distinção entre o canto litúrgico e o popular, como ainda vemos por lá, até hoje.
Aqui no Brasil o que chamamos de musica gospel não tem paralelo com seu homônimo norte-americano. sua trajetória tupiniquim é resultado de uma evolução natural da musica sacra, que em dado momento sofre a intervenção de gente econômica e politicamente poderosa, que a transforma em produto de mercado e ferramenta para a tomada de poder. A música sacra, como eram chamados os cantos litúrgicos em diversas denominações protestantes por aqui, passa a ser tocada sistematicamente nas rádios AM brasileiras a partir dos anos 60, quando surgem também as primeiras igrejas neopentecostais. Naquele momento as músicas reproduzem os cantos contidos nos hinários das igrejas, muito focadas na imagem de Deus como ser grandioso, único e senhor de tudo e também na chamada batalha espiritual, onde o "inimigo de nossas almas" é tido como grande culpado pelo "pecado" no qual o país está imerso, em plena Ditadura Militar. Entre os mais jovens, porém, surgem músicas de enlevo espiritual não tão aplicáveis aos momentos litúrgicos mas, com forte apelo celebrativo. São os chamados "corinhos", que trazem um clima coletivo mais arejado em comparação com os cantos tradicionais, conseguindo inclusive trazer novas figuras de linguagem não bíblicas, possibilitando aos jovens uma abordagem mais palatável em relação ao repertório ortodoxo, nos cultos e eventos extra oficiais, como festivais de música, encontros de jovens e seminários. De fato, o formato clássico de escrita dos hinos sacros muitas vezes era incompreensível aos "novo convertidos", o que fazia sentido após um tempo de imersão na doutrina eclesiástica e sua história, como vemos no exemplo do canto 329 do hinário batista Cantor Cristão: Se da vida as vagas procelosas são/Se com desalento julgas tudo vão/Conta as muitas bênçãos, dize-as duma vez/Hás de ver surpreso quanto Deus já fez.
Hinários, dando o tom da doutrina cristã-foto, cifraclub |
Disco canta para o mundo cristão, anos 50 |
Disco Obra Santa, 1969 |
E ao ver as gravuras dos quadros pintados
Daquilo que dizem ser o meu Senhor
Meu ser não aceita o que está na tela
É falsa a inspiração do pintor
Não creio, não creio num Cristo vencido
Cheio de amargura, semblante de dor
Eu creio num Cristo de rosto alegre
Eu creio no Cristo que é vencedor
Por outro lado esses intérpretes, pioneiros em boa medida, são figuras que trazem consigo algum testemunho marcante de vida, como o caso do também pastor e cantor Victorino Silva, demonstrando agora que Deus não apenas deve ser adorado por sua criação. Jesus, por sua vez, agora não é "apenas" o intermediário entre Deus e o homens mas, também alguém a quem é possível recorrer em situações que saem do controle pessoal ou em casos de injustiça social ou mesmo perda de patrimônio, por exemplo. Victorino Silva, Morador de Mesquita, município que à época era 5º Distrito de Nova Iguaçu, foi vitima de discriminação por ter uma deficiência congênita. Ainda muito jovem se envolveu com o crime e as drogas, além de ser acometido de uma grave doença pulmonar que quase lhe tirou a vida. Em 1959 Victorino se converteu ao cristianismo evangélico após, segundo relato do próprio, ter sido milagrosamente curado, passa a cantar nos cultos do Pr. Paulo Macalão, pioneiro das Assembleias de Deus no Brasil (1930), compositor e tradutor de muitos do hinos cantados em sua denominação cristã. Com sua voz possante e extensa e sob as graças do Pr. Macalão que o acolheu, Victorino grava em 1963 seu primeiro trabalho fonográfica e daí, não parou mais, estando em atividade até hoje. Podemos dizer que Victorino Silva lança uma tendência na qual Deus é posto como solução de questões insolúveis aos olhos humanos, superando inclusive o princípio bíblico do livre arbítrio. O discurso contido em suas músicas reafirma sua história de vida, como vemos:
Deus tem um plano em cada criatura
e aos astros ele dá o céu
e a cada rio ele dá um leito
e um caminho para mim, traçou
A minha vida eu entrego a Deus
pois o seu Filho entregou por mim
não importa onde for, seguirei meu Senhor
sobre terra ou mar
onde Deus mandar, irei
Os ano 70, com sua revolução cultural pipocando por vários cantos do mundo, inclusive o Brasil, trás consigo o início de um divisor de águas em relação a música evangélica. Com a difusão da ideia de "produção independente", muitas bandas e cantores surgem no cenário musical evangélico, trazendo diversidade e criatividade poética, além de inserir a então criminalizada guitarra, nos arranjos musicais da época. Estilos musicais como a Bossa Nova e até mesmo o Rock vão aos poucos se infiltrando no cancioneiro das igrejas. porém, ainda nos circuitos e encontros alternativos em relação aos cultos de domingo a noite. Podemos destacar o pioneirismo na produção musical evangélica protagonizada pelo grupo Vencedores Por Cristo, criado em 1968 pertencente a uma missão cristã independente. A música "De vento em popa" é considerado entre produtores musicais evangélicos como o marco zero no que se refere à composição de músicas que propõem uma ideologia cristã de fato. Lançado em 1977, o album deu um novo norte na relação musica instrumental e discurso, como vemos na letra:
De vento em popa, o sol por cima, embaixo o mar
A voz tão rouca já desafina se vai cantar
E os dois no barco rasgando as ondas
Vagando ao som das canções dos cais
Onde outro pileque, achando até que encontrou a paz
Mas veja lá no fim da história o que fica
Veja o que restou do pobre rapaz
Vendo que por baixo o mar já se agita
E por cima o sol calor já não traz
Pense, talvez seja essa sua vida
Lute, até encontrar o mundo melhor
Onde a dor, no peito não tem guarida
Onde brilhe sempre o sol...
Jesus batendo na sua porta, deseja entrar
Não lhe importa sua vida torta, quer te salvar
De um mundo torpe, de uma vida morta
De um sul sem norte, da morte enfim
E um novo riso te por nos lábios
Uma nova vida que não tem fim!
Abre o coração, derruba a muralha!
Deixe que Jesus te abrace também
Deixa que te inunde o amor que não falha
E o desejo de quem só te quer bem
Canta ao mundo inteiro a vida tão linda
Conta o que é ter perdão pelo amor
Quantas bênçãos há na graça infinda
Vive pra Jesus o Senhor!
Histórico, 11º disco da Produtora VPC, 1977 |
Como é possível notar nesse texto, há uma clara polarização no que diz respeito ao discurso contido em cada uma das duas vertentes da música evangélica nos anos 60 e 70. Se por um lado temos uma música que evoca os vínculos cristãos e a autocrítica, temos em contrapartida um constante pedido de socorro a Deus, com um discurso muito calçado na culpa e no pecado como motriz da aproximação entre o homem e "seu Senhor". Os cantos de louvor dão lugar a um tipo de Ato de Contrição, como que, colocando o homem em "seu devido lugar", levando o crente ao entendimento de sua incapacidade de olhar para Deus em condição justa, ao menos que reconheça sua irrevogável condição de pecador, como vemos na letra de Entrei no Templo, de Ozéias de Paula, gravada em 1979:
Entrei no templo, dobrei os meus joelhos
Para conversar com o Senhor
Desiludido do mundo, no peito, um sofrer profundo
Sem paz, sem fé, sem amor
Ajoelhado, senti o meu pecado
E o grande mal que ele me fez
Mesmo sem ter merecido, estava arrependido
Pedindo perdão mais uma vez
Ozéias de Paula, membro da Assembléia de Deus desde sempre, é uma figura que pode então servir como referência de uma tendência da música evangélica, no sentido que seu disco "Cem Ovelhas" lançado em 1973, foi o primeiro disco evangélico a vender mais de um milhão de cópias. A letra da canção acima é título de seu disco de grande sucesso, gravado em 1979, após sua recuperação de um grave acindente automobilístico que quase o ceifou a vida. Sua recuperação o levou a trilhar o mesmo caminho que Victorino Silva. Porém agora, diferente de seus antecesores e contemporâneos, se aproximando da política, incusive sendo a imagem emblemática que elegendo seu sobrinho Otoni de Paula como vereador no Rio de Janeiro e posteriormente, deputado federal, o que se torna modus operandi na virada dos anos 80, quando a dobradinha música e política passam a andar de mãos dadas. É nesse período que se torna comum a aproximação entre figuras seculares e o meio evangélico, tendo inicialmente a industria fonográfica como porta de entrada e, posteriormente, a comunicação via rádio FM, que se torna um importante instrumento de acesso ao voto de um segmento específico, cativo e sedento por novidades.
A invenção do "gospel" tupiniquim
No eixo urbano São Paulo-Rio de Janeiro, como afirmei acima, surgem os movimentos musicais que influenciam a vanguarda da música evangélica entre os polos de discurso vistos como pentecostal ou não e que influenciam o restante dos evangélicos em nosso país. Quando então falamos sobre o gospel em terras brasileiras, vale observar o que diz a Doutora em comunicação Magali do Nascimento Cunha, ao afirmar que esse movimento se sustenta por aqui sobre os eixos "mídia, consumo e entretenimento", dando nome e endereço aos responsáveis por esse fenômeno religioso. Em sua tese de doutorado que leva o título de "Vinho novo em odres velhos. um olhar comunicacional sobre a explosão gospel no cenário religioso no Brasil", Cunha pondera se o que ela chama de "explosão gospel" é de fato um movimento cultural. Considerando o "modo hibrido de vida cristã" que se percebe em meados dos anos 90, em particular em São Paulo, a autora aponta para a Igreja Apostólica Renascer em Cristo como entidade religiosa responsável por buscar hegemonizar o uso do gospel enquanto linguagem e produto, em meio a diversidade musical existente a época.
Marcha pra Jesus SP, um projeto nacional-foto iGospel |
Em 1990, Hernandes adquiria a primeira rádio da Renascer, trampolim para a atual rede de comunicação da Renascer: uma rede de televisão (a rede Gospel, cuja sinal abrange 74% do país, segundo a própria emissora), uma rede de emissoras de rádio (a Gospel FM), além de um dos empreendimentos mais bem sucedidos da igreja: uma gravadora de músicas religiosas, o que praticamente criou um novo segmento de consumo na indústria fonográfica do país, nos anos 80. A Igreja também possui estabelecimento de ensino privado (o Esar) e uma fundação de assistência social (a Fundação Renascer).
Em 1993 o casal Estavan e Sonia Hernandes cria a Marcha Para Jesus, que o casal estrategicamente promove sempre em período pré-eleitoral, com a finalidade de utilizar seus milhares de adeptos como moeda de troca com políticos pelo país. Essa, entre outras estratégias, ajudou a consolidar a imagem da igreja diante da classe política, que lhes serviu de amparo diante de uma série de consequências de seu expansionismo eclesiástico e midiático. Acusados pelo Ministério Público paulista por estelionato, falsidade ideológica e lavagem de dinheiro, Estevam e sua esposa Sonia Hernandes foram presos em 2007 por evasão de divisas. Os precursores do uso do gospel enquanto termo que define um novo modo de vida, na verdade adotam uma nomenclatura que caracteriza essa nova forma de horizontalizarão do ser cristão no Brasil. Principais difusores da chamada Teoria da Prosperidade, teóricos e teólogos chegam a denominar a Renascer como "seita", por conta de seu desprendimento doutrinário e distanciamento de princípios teológicos inerentes até mesmo ao neopentecostalíssimo.
No dia 01 de julho de 1987, a ponta carioca do eixo Rio-São Paulo, é inaugurada no bairro Vila da Penha a Rádio Melodia FM, com o slogam "A torre mais alta do Rio" pois, após ser comprada no ano anterior, manteve sua antena de transmissão em Petrópolis, de onde foi transferida, ampliando assim a capacidade de alcance daquela que chegou ser a rádio mais ouvida do estado, em 2001. Francisco Silva, que era um empresário muito bem sucedido e visionário, tomou para si o protagonismo da comunicação evangélica, que de fato era um enorme filão de mercado, coisa que ele conhecia bem, pois foi anunciante durante muitos anos na Radio Globo AM, vendendo o elixir Atalaia Jurubeba, verdadeiro fenômeno de vendas. Obviamente essa dobradinha púlpito e palco, que só teve paralelo na chamada Era do Rádio, soou como música literalmente nos ouvidos dos radiocomunicadores brasileiros, tornando-se o principal método para o vertiginoso crescimento dos evangélicos no Brasil, ainda que muito evangélicos não resistiam à corriqueira e recorrente pergunta:“o Francisco Silva é membro de qual igreja mesmo?” Pergunta que, obviamente, ficou sem resposta até 06 de outubro de 2017, quando faleceu, ao 79 anos.
Aos 79 anos, morre um ícone da relação comunicação e política |
Criada em 1987 como empresa de publicidade, a então MK Publicitá (publicidade em francês), criada por Arolde de Oliveira, muda seu estatuto social no inicio dos anos 90, passando a atuar no ramo de produção de eventos. A MK, agora administrada por Marina de Oliveira, filha de Arolde, mantém a já consolidada ideia de manter um pé nos dois lados da polarização discursiva evangélica. Com a contratação da Banda nilopolitana Catedral e a cantora iguaçuana Cassiane, a produtora dá o norte da atuação no mercado de música gospel, atendendo tanto à parcela moderada com uma banda de Rock e ao tradicionalismo pentecostal, com Cassiane uma cantora que cresceu cantando os tais “corinhos de fogo”. O fator fundamental está em dois importantes e significativos aspectos. De um lado, o investimento na juventude como público alvo, enquanto os arranjos musicais sofisticados passam a ser um tipo de mantra a ser repetido exaustivamente. Agora, a música evangélica não precisava mais de cantores que garantiam sua credibilidade tendo como prenome o título de pastor. Vale também observar aqui o fato de que, no momento anterior à “explosão gospel”, grandes e consolidadas cantoras evangélicas não gozavam do mesmo prestígio que os cantores. Nomes como Shirley Carvalhais, Mara Lima e Denise Cerqueira, ganhavam bem menos que os homens, ainda que seus discos fossem tão disputados nas livrarias evangélicas, quanto os dos cantores.
Disco comemorativo ao casamento de Marina e Brizola |
No clipe de Cassiane, cena explícita de violência doméstica |
saiba mais detalhes em:
https://www.portaldotrono.com/fernanda-brum-revela-experiencia-terrivel-ao-lado-de-cantora-gospel/
https://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u88455.shtml
https://acervo.folha.com.br/leitor.do?numero=12455&keyword=Renascer&anchor=4829841&origem=busca&originURL=&pd=bb4030e2cf8d57310a3caab8cb0dc997
https://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u88466.shtml
link Cassiane no Raul Gil fala sobre ação movida pela MK
https://www.youtube.com/watch?v=0z8mdgpmdx8