quarta-feira, 4 de novembro de 2020

DOUTOR FULANO E OS NOVOS “TÍTULOS DE NOBREZA”, NO BRASIL

 

Foto: portal G37

Se no passado, títulos como os de barão, conde ou coronel outorgavam condição superior diante das demais pessoas, vemos nos dias atuais a busca de muitos por uma denominação de destaque, mesmo que o detentor do “título” não tenha necessariamente a formação que faça jus ao que muitos consideram inclusive como prenome. Tem sido frequentes notícias relacionadas a autoridades públicas que se envolvem em confusões com agentes da lei e no geral, as queixas são as mesmas. Ainda que diretamente envolvidos em algum tipo de infração, tais figuras públicas de maior status se sentem profundamente ofendidas por supostos atos de desrespeito a seu status, ofendendo por sua vez policiais, agentes de trânsito ou algum outro servidor público em pleno exercício de suas funções, logicamente em situação de suposta subalternidade.

Em matéria publicada no site Gazeta do Povo, publicada no dia 18 de julho, lemos que o desembargador Eduardo Almeida Prado Rocha de Siqueira, do Tribunal de Justiça de São Paulo, chamou de ‘analfabeto’ um guarda municipal que lhe pediu que colocasse a máscara exigida por decreto da prefeitura para locais públicos durante a pandemia do coronavírus. Já no dia 23 do mesmo mês, em matéria publicada no site G1, o citado desembargador, por conta da repercussão negativa do caso, publica a seguinte retratação:

"Minha atitude teve como pano de fundo uma profunda indignação com a série de confusões normativas que têm surgido durante a pandemia – como a edição de decretos municipais que contrariam a legislação federal – e às inúmeras abordagens ilegais e agressivas que recebi antes, que sem dúvida exaltam os ânimos. Nada disso, porém, justifica os excessos ocorridos, dos quais me arrependo. O guarda municipal só estava cumprindo ordens e, na abordagem, atuou de maneira irrepreensível. Estendo as desculpas a sua família e a todas as pessoas que se sentiram ofendidas"

Desembargador menospreza agente de segurança
Não fosse a ampla repercussão pública de mais esse fato lamentável protagonizado por um agente público de alto escalão, esse seria mais um entre inúmeros casos discriminação e ofensa a figuras tidas como subordinadas ou, como disse o desembargador Eduardo Almeida, “analfabeto”, como se tal condição fosse passível de desprezo. Vale então traçar um breve perfil desse novo tipo de “nobre” e que lastro tal figura tem, que possibilite tal postura.

De fato, o judiciário tem se configurado como estrutura de poder, inclusive político. Segundo Frederico Noronha, em seu trabalho “A Nobreza Togada”, os membros do judiciário que, conjuntamente à função de magistrado, exercem maior disputa de espaço político e social, considerando principalmente sua faixa de renda como fator que legitima sua superioridade. Ou seja, o juiz, desembargador ou outro entre seus congêneres pertencem a uma camada social apartada dos demais cidadãos, não apenas pelo fato de pertencer a um dos três poderes da República, mas também e muito principalmente pelo poder econômico que ostentam. Exatamente por esse motivo temos também vasto repertório que exemplifica a associação direta entre a autoridade do juiz e seu poder financeiro.

Em setembro de 2019 foi amplamente divulgado o caso do procurador da Justiça de Minas Gerais Leonardo Azeredo dos Santos, que se queixou do que o mesmo considera “baixo salário”, ao ponderar que é muito difícil criar um filho com um salário de 24 mil reais por mês. Em matéria publicada no site do Correio brasiliense, o procurador comenta, em um áudio postado em grupo de WhatsApp:

Estou fazendo a minha parte. Estou deixando de gastar R$ 20 mil de cartão de crédito e estou passando a gastar R$ 8 (mil), para poder viver com os meus R$ 24 mil. Agora, eu e vários outros já estamos vivendo à base de comprimidos, à base de antidepressivo. Estou falando desse jeito aqui com dois comprimidos sertralina por dia, tomo dois ansiolíticos por dia e ainda estou falando desse jeito. Imagine se eu não tomasse? Ia ser pior que o ;Ronaldinho;. Vamos ficar desse jeito? Nós vamos baixar mais a crista? Nós vamos virar pedinte, quase?”

Queixa pelo Watssap: procurador vive no "miserê"
Segundo o site mineiro “o Tempo”, o vencimento bruto do procurador é de o vencimento bruto é de R$ 35.462,50, o que não foi levado em consideração por seus pares, considerando que a Corregedoria do MP mineiro não tomou atitude no sentido de recriminar tal fala em grupo, que acabou vazando. O que fica nítido é que a crítica feita não configura fato isolado entre os procuradores mineiros.

O “doutor fake” na nova ordem política

O mês de outubro de 2020 ficou marcado por mais um entre tantos casos de figuras ligadas ao presidente Bolsonaro, cujo currículo é, pelo menos, duvidoso. Kassio Nunes Marques, desembargador do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF 1), foi indicado pelo atual presidente a ocupar a vaga do Ministro Celso de Mello. O que vemos na verdade é que a indicação de Marques é a pedido do Presidente do Senado Davi alcolumbre e atende a ideia de Bolsonaro, ao afirmar que pensa em ter um membro do STF que “tome Tubaina comigo”.  O fato é que o jurista ocupou as matérias jornalísticas por citar em seu currículo uma pós graduação na Universidad de La Coruña (Espanha), fato legado por aquela instituição de ensino. No entanto essa está longe de ser um fato isolado.

Uma das figuras inegavelmente mais importantes e influentes do governo Bolsonaro é a Damaris Alves, pastora e figura de livre trânsito nos gabinetes do Congresso Nacional. Em janeiro de 2019 o site Folha UOL publicou que “num de seus discursos mais famosos, ao menos até virar Ministra da Mulher, Familia e Direitos Humanos, Damares Alves se apresentava à plateia: não estão diante apenas de uma pastora, mas de uma advogada que é também mestre em Educação e em Direito Constitucional e Direito da Família”.  Já em matéria do mesmo site em 31 de janeiro, a ministra pastora afirma que “Diferentemente do mestre secular, que precisa ir a uma universidade para fazer mestrado, nas igrejas cristãs é chamado mestre todo aquele que é dedicado ao ensino bíblico”. Mentir no currículo então tem levado pessoas a passar de uma condição de auto titulação, a uma chancela aceita pela em meios sociais onde não se imaginava que seria possível conceber tal prática. Não fosse o olhar atento da imprensa e de desafetos políticos, municiados de ferramentas como as redes sociais, tais títulos fake passariam batido.

Damaris: título dado por Deus. foto: G37

No que diz respeito a prática do currículo fake no atual governo federal, a lista é interessante, passando pelo ex Ministro da Educação Velez Rodrigues, cujo currículo apresenta 22 erros, como denuncia o site UOL  em 26 de junho. Outro que apresenta problemas em seu currículo é o também polêmico ex-ministro Weintraub, cujo título de Doutor não consta no Currículo Lattes nem no Linkedin, Além do ex/futuro ministro da Educação Carlos Decotelli, que alegou alcançar o gral de Doutor em Universidade Nacional de Rosário na argentina, além de Ricardo Salles, que mentiu ao declarar ter estudado na Universidade de Yale nos EUA. Mentir quanto a própria titulação tornou-se então algo amplamente corriqueiro e aceitável nesse novo momento político, o que se reflete na rasa capacidade de produção de políticas públicas por parte do governo federal.

No que se refere ao títulos emblemáticos na busca por um espaço na vida pública, uma candidatura simbólica nessas eleições de 2020 é a do Pastor Sargento Isidoro (O Doido). Pai de sete filhos e diretor de um centro de recuperação para dependentes químicos, ele que é deputado federal com mais de 130 mil votos pelo estado da Bahia, O Doido se candidata agora a prefeito de Salvador pelo partido Avante, apoiado pelo enfrentamento ao preço do gás de cozinha. Com um discurso fundamentalista e se colocando como mediador entre o tráfico de drogas e o poder público, Isidoro se notabilizou por sua criativa forma de enfrentamento ao fundamentalismo bolsonarista. Segundo ele mesmo, “pra conversar com doido, só outro doido”.

Pastor Sargento Isidoro, "O Doido" foto:Agência Lupa

Pastor, título de nobreza entre os de baixa renda

A partir da Abertura Política nos anos 80 foi significativa a ampliação de espaços de representação social, sobretudo na base da sociedade. Na região da Baixada Fluminense em particular, vimos a consolidação das associações de bairro, além das Comunidades Eclesiais de Base da Igreja Católica, de forte penetração social. Essas últimas discutiam questões fundamentais tais como direitos da criança, acesso a terra, saúde pública e até atenção a população carcerária. Contudo, na década seguinte o número de parlamentares e gestores públicos de esquerda se amplia, levando para dentro de seus gabinetes as principais lideranças de base. A justificativa de parte a parte era a de potencializar a ação política na estrutura estatal, fragilizando, no entanto, as estruturas da discussão “na ponta”, a população mais carente. Ou seja, a primeira década dos anos 2000 chega, refletindo o triste fato de que sindicatos, associações de moradores, grêmios estudantis, entre outras instâncias de representação social perderam o “sotaque” das bases, deixando um buraco no que se refere a escuta de quem mais carece de políticas públicas.

 

Pastor Everaldo, preso por fraude

Na verdade, como todos nós aprendemos nas primeiras aulas de Ciências, não há espaço vazio na natureza e, no que se refere a nós, seres humanos e brasileiros, é possível notar que é a partir da camada menos abastada da sociedade que emergem soluções a seu modo. Nesse caso, a instância no qual se apoia a autoridade dos novos líderes locais é poder de Deus. De forma invisível tanto à grande mídia quanto aos formuladores políticas públicas, as igrejas neopentecostais espalhadas pelos bairros pobres e periféricos vêm dando convenientes respostas à população. Temos dados que mostram que na primeira década dos anos 2000, as lideranças religiosas vêm intervindo em áreas como cultura, política e mídias (IBGE 2010).

A partir do período ao qual a pesquisa do IBGE se dedicou, coincide o aumento no número de lideres religiosos constando entre os principais articuladores de políticas locais. Com o gradativo esvaziamento das estruturas de amparo social, baixo índice de propostas governamentais às politicas públicas e através da diminuição de recursos financeiros destinados a assistência social, cultura e saúde, por exemplo, as lideranças locais têm apontado para as igrejas como espaço de amparo comunitário e espiritual. A partir dessa lógica, pastores e missionários neopentecostais vêm disputando protagonismo não apenas nas instâncias de influência eclesiástica, mas também nos espaços de representação política. Ou seja, se auto intitular pastor, bispo, missionário ou até mesmo “Irmão Fulano”, produz certo tipo de elevação no status individual. É possível notar que tais títulos são incorporados por seu usuários como nomes próprios, carecendo portanto do respeito e respaldo devido, segundo entendimento dos mesmo, algo que seu meio social absorve com naturalidade.

Em matéria publicada no dia 01 de outubro desse anos pelo site G1, 8,7 mil dos que pleiteiam cargos eletivos adotaram títulos religiosos como forma de identificação de suas candidaturas.

” Entre os títulos, o mais utilizado é o de pastor/pastora, com mais de 51% dos casos (4.426), seguido por irmão/irmã, com 41% (3.561). Como concentram a maior parte das candidaturas, os postulantes ao cargo de vereador apresentam também o maior número de títulos religiosos. Na sequência, aparecem os candidatos a vice-prefeito e, por último, os candidatos a prefeito.”

Segundo matéria do site Congresso em foco, publicada em 15 de setembro, é possível ter uma ideia mais clara quanto a ocupação de cargos públicos por evangélicos: bancada evangélica no Congresso Nacional está cada vez mais numerosa e, com isso, busca mais poder e cargos relevantes. Em 1994, eram 21 deputados federais evangélicos, hoje já são 105 deputados e 15 senadores, o que equivale a 20% do Congresso. Uma breve busca no Google utilizando o termo “Deputado Pastor”, resulta em mais de 85 mil resultados, observando logicamente as redundâncias de resultado, sem considerar, porém o uso do termo “Prefeito Pastor” e “vereador Pastor”, o que faria saltar significativamente esses números.

No artigo “Nobreza e principais da terra — América Portuguesa, séculos XVII e XVIII”, do professor Ronald Raminelli (2018), percebemos um aspectos muito peculiares quanto a reivindicação de um status privilegiado na sociedade. Segundo o professor Raminelli, a nobreza por nascimento era algo raro e pouco duradouro no Brasil. Já no período pesquisado era possível notar que o acúmulo de patrimônio, ocupação de cargo público ou patente militar eram os fatores que garantiam preponderância social em relação aos demais. O que o autor chama de “nobreza política”, tem haver com o apoio ao “Rei”, por parte dessa figura que ascende socialmente que, em contrapartida, tem sua o olhar complacente e abençoado do grande senhor. Não será assim também nos dias de hoje?

Leia mais em:

Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S2237-101X2018000200217&script=sci_arttext

 https://congressoemfoco.uol.com.br/legislativo/veja-quais-deputados-e-senadores-fazem-parte-da-bancada-evangelica/

https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/01/sem-diploma-damares-ja-se-apresentou-como-mestre-em-educacao-e-direito.shtml;

https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/01/sem-diploma-damares-ja-se-apresentou-como-mestre-em-educacao-e-direito.shtml;

https://www.gazetadopovo.com.br/republica/breves/desembargador-ofende-guarda-municipal-e-rasga-multa-por-nao-usar-mascara-contra-covid-19/

https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2020/07/23/desembargador-que-chamou-gcm-de-analfabeto-pede-desculpas-nada-disso-justifica-os-excessos-ocorridos-dos-quais-me-arrependo.ghtml

“A nobreza togada: as elites jurídicas e a política da Justiça no Brasil” disponível em: https://doi.org/10.11606/T.8.2010.tde-08102010-143600

https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2019/09/09/interna_politica,781552/como-o-cara-vai-viver-com-24-mil-reais-reclama-procurador-em-mg-ouca.shtml