quarta-feira, 5 de fevereiro de 2020

FUNDAMENTALISMO CATÓLICO NA CULTURA? SIM, EM TODAS ELAS


"Atendendo vontade divina", é a justificativa de Regina Duarte para Cultura. foto:Pleno.News


Nada mais comum do que um governante intervir no modo de vida da sociedade, como ocorre hoje no Brasil. Nesse caso, acho que Regina Duarte está mesmo no lugar certo, por ser ela uma representante do segmento das artes cênicas e também uma fervorosa católica, segundo o que ela mesmo declara.

Se a gente pensar então que esteticamente cultura inclui um conjunto de símbolos e linguagens que refletem determinado modo de vida, podemos compreender as motivações de ministros e secretários desse governo, tomando como exemplo falas de Roberto Alvim, secretário anterior da Cultura e também profissional dos palcos. O diretor teatral católico fervoroso que alega ter sido curado de um câncer, defendia a horizontalização de valores tradicionais, para a nação. Em entrevista sua ao site de O Globo, edição de 19 de julho de 2019, Alvim sai em defesa do presidente que o acolheu, convocando a quem o mesmo  define como  “artistas conservadores”,  para criar uma “máquina de guerra cultural” em defesa do governo, referindo-se a foto de Fernanda Montenegro que posa fantasiada de bruxa sobre uma pilha de livros. 
  
Se considerarmos as relações históricas entre fé e poder, veremos que não há interferência tradicional mais duradoura que as da igreja católica. É lembrar que dominação e determinismo moral são ditados pelo Vaticano há séculos, interferindo em diversas culturas. Agora, quando Regina Duarte (também católica fervorosa) alega cumprir uma "vontade divina" ao assumir a pasta, fica claro que definitivamente não é possível debater cultura com esse tipo de líder político ou com quem o apoia, considerando que é impossível discutir com Deus, pelo menos com esse, em quem o atual governo apoia suas ideias. Cabe lembrar mais uma vez que vem de longe essa ideia de tomar o poder tendo uma visão particular de Deus como estratégia, usando uma série de dogmas e símbolos como meio legitimação do poder e a história está repleta de exemplos.

 Pepino, o Breve (assim chamado por ser baixinho e não pelos seus dezessete anos no poder), é considerado o primeiro nobre a ser consagrado rei sob as bênçãos da igreja. A historiadora Maria do Carmo Parente Santos em sua obra “As relações de poder entre a Igreja e o Estado francês no séc. XII” nos diz que aquele nobre usurpou um trono que naturalmente seria ocupado por membro de outra dinastia:

Pepino então ousou. Para ele tratava-se de legitimar sua autoridade ligando-a não à ordem humana - falha, sempre precária e por isso mesmo passível a todo momento de contestação - mas alicerçá-la através da ligação com a própria ordem sobrenatural e transcendente e, por conseguinte, incontestável. sobrenatural e transcendente e, por conseguinte, incontestável. Assim, apela para o papa no sentido que reconheça seu direito ao trono. Zacarias [o papa] ao atender ao apelo de Pepino e aprovar sua permanência como rei dos francos também o faz atendendo à diretriz de estabilidade do corpo social, viga mestra na construção a que persistentemente os ideólogos da Igreja vinham se dedicando, a idéia de ordem humana como reflexo da ordem divina, a sociedade humana como resultado da vontade de Deus (p. 393).
 Está dado aí o fechamento ideal entre duas forças que têm projetos de poder a longo prazo. De um lado, um valoroso comandante militar que almeja ser rei, mas que não se legitimaria naturalmente, pois era o terceiro filho de Felipe I. Pepino se articula com o clero e é então coroado com base em seu discurso de poder estabelecido por outorga do próprio Deus. Por outro lado, o Papa carecia de forte apoio militar, haja vista os constantes roubos ao patrimônio eclesiástico comprometiam o poderio financeiro e patrimonial da igreja, que tinha claros projetos de expansão, mas não poderia contar com tropas, por conta da natureza de seu discurso. A partir de então, o conjunto formado pelo poderio militar, aliado a onipotência divina poderia daí por diante, ser resumida a figura do rei, como figura santificada. Essa forma de dominação seria tempos depois imitada pelos demais monarcas europeus, método que criou lastro em muitos outros níveis de poder como o judiciário, vide o hábito que se seguiu, de imposição da mão sobre a bíblia em juramento. 
 
Luis XIV:um rei fabricado. foto: Wikipedia
No entanto precisamos ter clareza de que uma imagem ou uma ideia não pegam assim, com tanta facilidade, sobretudo à medida que o tempo passa. É necessário que haja um empurrãozinho para que as ideias de um novo mandatário entrem no imaginário coletivo, principalmente se for o caso de tal figura surgir com determinações muito diferentes dos que assumiram o poder antes dele. Ou seja, a estratégica ideia de criação de um mito político tal como vemos hoje no Brasil, também tem escola. Luis XIV, chamado por seus admiradores de “Deus Sol”, adotou estratégias “marqueteiras” de convencimento de seu povo, já no Século XVII, podendo ser considerado um dos primeiros casos em que o artista se associa ao poder, em benefício mútuo.  Anacronismo a parte, esse monarca tem paralelo com o que vemos hoje, quando pensadores e artistas se colocam a serviço de uma imagem a ser firmada na cabeça do povo. Segundo Peter Burke (1994):

As ideias do século XVII sobre a relação entre arte e poder podem ser dispostas ao longo de um espectro. De um lado havia os escritores que pareciam conferir  imagem real seu valor nominal, fossem eles poetas a escrever odes ao rei, historiadores a narrar suas vitórias ou eruditos a descrever as decorações de Versailles. Descreviam estátuas e outros monumentos como meios de ‘instruir o povo’, incentivando-o a amar seu príncipe e obedecê-lo (p.17).
 O fato é que os monarcas medievais foram transformados em mitos, em boa medida por artistas que vieram depois deles, enquanto os estadistas contemporâneos se utilizam de recursos mais ágeis como a internet, de modo a massificar em tempo real as ideias que os colocaram e os mantém no poder. A estratégia de hoje é  criação de uma imagem mitológica e até metafísica, que se adapte a cada nova demanda pela consolidação da imagem, buscando criar consenso na sociedade. O discurso do medo, que Regina Duarte eternizou, quando na eleição de Lula em 2002, também não representa nenhuma novidade. Grupos católicos conservadores mantêm a prática de embasar doutrinariamente seu apoio a seja qual for o governo que se coloque frontalmente contra os princípios do clero.

Marcha das Familias com Deus, frases como as de hoje. foto: Bruno Toscano
Podemos citar como exemplo os fatos que motivaram o golpe de 1964, quando a parcela conservadora e mais influente da igreja se colocou contra o que determinou o Concílio Vaticano II (1961), sob o comando do Papa João XXIII.   No documento da igreja constavam orientações quanto ao zelo dos clérigos por valores voltados a justiça social e defesa dos Direitos Humanos, determinação que a camada dominante da sociedade ligada a igreja católica, ignorou sem pestanejar. As reformas de base projetadas por João Goulart não eram do agrado de latifundiários, economistas e  membros do judiciário a época, que entendiam ser mais seguro apoiar uma intervenção militar do que as incertezas de um governo simpatizante do comunismo. Nesse sentido, cerca de meio milhão de católicos realizam a “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”, realizada no dia 19 de março de 1964, dia de São José, padroeiro das famílias.
Para que possamos ter uma noção clara da relação entre os discursos conservadores daquela passeata com o que vemos na atualidade, basta dar uma olhada em alguns cartazes que os manifestantes levaram, trazendo frases como: “Vermelho bom, só batom”, “Um, dois, três, Brizola no xadrez”, “Verde Amarelo, sem foice e sem martelo”, “Tá chegando a hora, de Jango ir embora”, "O Kremlin não compensa", "Abaixo o entreguismo vermelho", "A melhor reforma é o respeito à lei", "Chega de palhaçada, queremos governo honesto".

O que posso concluir é que o fundamentalismo católico é especialmente perigoso à sociedade, pois é diferente do radicalismo protestante que, em sua maioria, conta com seguidores pouco instruídos e de baixa afinidade com a leitura, em decorrência de sua baixa renda e pouco tempo de escolaridade. Já a média de escolaridade dos católicos é mais elevada, além de sua faixa de renda que supera os radicais evangélicos.  Cabe observar que a capacidade de articulação interna e externa dos radicais católicos em relação ao restante da sociedade, é bem maior, ainda que os evangélicos sejam em maior número.   Em 2015, um grupo de católicos ligados ao Instituto Plinio Corrêa de Oliveira (IPCO), entidade privada que, segundo seu estatuto, visa zelar por uma “defesa da Civilização Cristã”, fez pressão sobre o Papa Francisco. A instituição, que tem sede em São Paulo e que dá suporte intelectual a católicos por todo território nacional, lançou um abaixo assinado que foi encaminhado ao Sumo Pontífice. 
Trata-se de uma coleta de assinaturas – em vista do próximo Sínodo sobre a Família, que ocorrerá em outubro de 2015 – a ser enviada ao Papa Francisco solicitando uma palavra esclarecedora para superar a crescente confusão entre os fiéis, causada pelas informações veiculadas por ocasião do último Sínodo, sobre a “possibilidade de que se tenha aberto no seio da Igreja uma brecha que permite a aceitação do adultério – mediante a admissão à Eucaristia de casais divorciados recasados civilmente –, e até mesmo uma virtual aceitação das próprias uniões homossexuais, práticas essas condenadas categoricamente como contrárias à Lei divina e natural
 Segue o link do documento na íntegra.

Mais adiante, em 2019, o mesmo grupo se envolve no enfrentamento ao Sínodo da Amazônia, encontro de religiosos católicos com o Papa, que discute o papel da Igreja em relação a questões ambientais no Brasil. o documento de trinta páginas discute, entre outros pontos, seu papel missionário, defendendo por exemplo a ideia de uma “Igreja samaritana, misericordiosa, solidária (...) em diálogo ecumênico, inter-religioso e cultural”. 

Para o Papa Francisco a missão da igreja é o ser humano. foto: O Globo
Em documento enviado ao encontro, o IPCO entende que o mesmo se destina a uma “utopia comunotribalista pela qual uma minoria de antropólogos neomarxistas pretende manter nossos irmãos indígenas no subdesenvolvimento, confinando-os num gueto étnico-cultural, verdadeiros ‘zoológicos humanos”
Vale observar que simultaneamente, ocorria um encontro no hotel Quirinale, em Roma, com aproximadamente 200 pessoas, com a participação palestrantes expoentes do catolicismo conservador, incluindo o deputado Eduardo Bolsonaro. A tônica desse encontro foi a busca por estratégias capazes de barrar o que o IPCO chamam de “esquerdização da igreja”. Em matéria de 11/10/19, o Blog da Cidadania traz parte de um documento expedido pela instituição, afirmando que o zelo daquele coletivo não se dá no sentido de criar cisão na igreja,  “Mas de trabalhar para que não haja excessos, distorções e perversões da fé católica de 2.000 anos”, como se fosse possível cristalizar a sociedade em suas forma diversas, durante tanto tempo.

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Referências: 
BURKE, Peter. A Fabricação do Rei: a construção da imagem pública de Luis XIV. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1994;
Maria do Carmo Parente Santos. LUÍS VI E SUGER As relações de poder entre a Igreja e o Estado francês no séc. XII. disponível em: http://dx.doi.org/10.15448/1984-6746.1995.159.35991

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