terça-feira, 18 de fevereiro de 2020

A MÁSCARA REVELA OU ESCONDE TUDO?


A sociedade na qual vivemos, com sua estética e comportamentos preestabelecidos, é inegavelmente uma forma de ditadura bem peculiar. Partilhamos  e absorvemos uma hegemonia cultural tão pesada, que precisamos de algum mecanismo de proteção individual ou esconderijo, que nos permita fugir da formatação social que nos oprime. A máscara é então uma forma de esconder ou até revelar o que verdadeiramente é uma pessoa ou pequeno grupo de pessoas que enfrentam um conflito particular. Nós, que hoje assumimos viver em bolhas sociais, em muitos casos precisamos de uma maneira de estar invisíveis em outros grupos e assim, deixar numa gaveta a verdade sobre quem de fato queremos ser. Na ficção a máscara esconde tanto o herói quanto o vilão, que se abrigam de si mesmos, seja por vergonha ou por trauma, causados por aquilo para que foram  criados. Na arte ou na festa a máscara, é por sua vez, aquilo que nos permite flutuar fora da bolha, nos misturando com outros que se agregam a um personagem coletivo, onde os iguais se defendem ou até mesmo atacam de forma orquestrada. 

Máscara de tragédia grega - fonte ignorada
Os gregos antigos nos possibilitaram fazer uso do que a sociologia chama hoje de "máscara social", ao adotarem faces pré definidas com características pessoais típicas ao meio, o que era representado a partir de padrões que as pessoas observavam em seu dia a dia. Algo tão marcante que se tornou inclusive símbolo do teatro hoje. Quando o ator "se mascara", ilustrando assim outra pessoa em determinado contexto, percebemos que esse artista pouco difere do que acontece conosco, quando “vestimos” um personagem, seja para uma conquista amorosa ou entrevista de emprego, por exemplo.   Segundo Felisberto Sabino (2005), “O ator relaciona-se com o mundo sob a perspectiva de um outro ser” (p.03) e essa é uma lógica que nos envolve a todos, naquilo que chamamos de “vida real”. O que a realidade cotidiana difere dos palcos é que identidade é uma escolha, diferente de um personagem elaborado por um roteirista, ainda que, em ambos os casos exista um papel pré estabelecido em um roteiro tanto social quanto teatral. Ou seja, para a sociologia a identidade é fruto da socialização, que por sua vez, varia de tempos em tempos. Em sua obra “Espelhos e Máscaras” 2011, Anselm Strauss discute um conjunto de ideias que dizem respeito ao “eu” e seu lugar na coletividade, mostrando que “as interações acontecem entre indivíduos, mas os mesmos também representam – em termos sociológicos - coletividades diferentes e, muitas vezes, múltiplas que se estão expressando por meio das interações”. podemos entender então que é possível que uma pessoa tenha uma postura no trabalho e outra totalmente diferente quando vai ao samba ou à igreja e para que isso ocorra, é necessária ao indivíduo uma postura condizente com cada um desses lugares.
 
Festa dionisiana - fonte ignorada
A ideia da máscara cabe como elemento que ilustra bem um contexto social de proteção ou escolha do “eu”. Um capacete ou um elmo medieval por exemplo, protegem a cabeça de estilhaços ou golpes, enquanto o uniforme cria identidade de grupo e principalmente define hierarquia. Já a máscara, enquanto objeto fetichizado, representa a autonomia do indivíduo em relação um grupo, resguardando a identidade, enquanto revela o caráter do indivíduo ou de um coletivo, o que percebemos logo no primeiro olhar. Posso pensar que é exatamente por isso que os deuses egípcios têm corpo humano e cabeça de animal, considerando que a natureza que lhes é atribuída em família já não é capaz de retratar sua identidade em gerações egípcias posteriores. O Deus Hórus, por exemplo, surge como deus do silêncio e da sabedoria, mudando radicalmente tempos depois, quando lhe é dada uma cabeça de falcão, simbolizando seu olhar sobre onisciente sobre todo povo egípcio. O fato é que a forma como se desenvolve a interação em sociedade, coloca pessoas como personagens ligadas a um roteiro e não como indivíduos ou protagonistas, omitindo suas identidades. É por esse motivo que, sob o ponto de vista sociológico, a ideia de máscara social se encaixa perfeitamente a estratégia de fuga a qual cada indivíduo pode recorrer, sempre que uma tradição, doutrina ou pacto social já não lhe faz mais sentido.

Já no aspecto material, tanto na realidade quanto na ficção a máscara se presta tanto ao lícito quanto ao ilícito. Longe da ideia insegurança pessoal ou como reflexo de uma patologia, a máscara pode servir para encobrir ações tanto da justiça quanto do crime, muitas vezes distante do engraçado ou do romântico que os filmes e séries nos apresentam, mostrando que o vilão tem no fundo algo bom que nos cativa. O fato é que a história está repleta de fatos revolucionários, heroicos ou cruéis, nos quais indivíduos impõem o terror ou engendram lutas democráticas como forma de controle social ou tomada de poder. A máscara então encobre ações de seus usuários, haja vista que, no que diz respeito senso comum, as atitudes do então mascarado ou seu grupo são invariavelmente injustificáveis, daí o recurso do encobrimento da identidade, possibilitando que, sem ela, criminosos e justiceiros circulem incógnitos entre nós. 

A máscara e a ideia de unidade
Série La Casa de Papel: mascara de criminosos viralizou. foto: Netflix 

O fator que contribui de forma significativa para que a máscara se torne elemento de reforço dramático nas telas é seu uso como símbolo de unidade em um grupo. Diversos filmes e séries, alguns de estrondoso sucesso, nos mostram o fascínio que grupos de mascarados exercem sobre as pessoas, há gerações. São vários os exemplos dos quais podemos fazer uso para ilustrar tal fato, exemplos esses que podem ser positivos ou negativos sob o ponto de vista também de cada grupo ou indivíduo. 

Subcomandante Marcos, um dos líderes do EZLN
Na década de 90 no México surge um movimento armado paramilitar que chamou a atenção não só de seus patrícios mas também viralizou na mídia internacional. O Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), liderado pelo autodenominado Subcomandante Marcos, inicia em 01 de janeiro de 1994 uma marcha de mobilização nacional em favor dos direitos de povos indígenas. O grupo armado do EZLN que era composto majoritariamente por indígenas, fazia uso dos capuzes como forma de horizontalizar a liderança, ainda que Marcos tenha sido visto pelo mundo como orador mais eficiente e carismático. Uma mobilização nacional levou centenas de milhares de pessoas à Capital, levando o então presidente Vicente Fox a propor um acordo, atendendo assim a reivindicações daquele movimento. Com os avanços positivos em relação às reivindicações e a ampliação da capacidade política da EZLN, o grupo opta em 2005 a se registrar como partido político, denunciando as estruturas de poder, voltadas a concentração de riqueza e impedimento de ascensão das mais de sessenta nações indígenas mexicanas. Os encapuzados da EZLN, ainda que tenha se consolidado como grupo paramilitar armado, se tornou símbolo internacional de resistência popular.

Mas a história do movimento de pequenos grupos identitários não é formada apenas de levantes populares munidos de valores e propósitos dignos. É difícil compreender como a nação mais rica e desenvolvida do planeta ainda reproduz práticas discriminatórias do século XIX.  É exatamente no Século XXI que percebemos, através  da eleição de Barack Obama a presidente, que organizações racistas adormecidas naquele país,  apenas precisavam de um motivo para eclodir com plena força. E a liberdade com a qual esses grupos se manifestam, tem respaldo na própria Constituição. O texto da 1ª Emenda que ao mesmo tempo afirma defender a igualdade entre as pessoas, também dá base para que grupos radicais se manifestem livremente em todo país. O texto constitucional diz o seguinte:

"O congresso não deverá fazer qualquer lei a respeito de um estabelecimento de religião, ou proibir o seu livre exercício; ou restringindo a liberdade de expressão, ou da imprensa; ou o direito das pessoas de se reunirem pacificamente, e de fazerem pedidos ao governo para que sejam feitas reparações de queixas".

KKK no séc. XIX: finalidade de assustar e reprimir os negros no Sul dos EUA
Fonte: listeningbetweenthelines.org
A ku Klux Klan, organização que usa a chamada “máscara do orgulho americano”, tem seu início oficialmente no ano de 1865, no estado do Tennessee, Norte dos EUA. Com o fim da Guerra Civil Norte-Americana, era um absurdo para os brancos conservadores da Região, ver um crescimento exponencial no número de negros  que ocupavam cargos políticos e na hierarquia militar. Avessos ao texto da 1ª Emenda, onde a Constituição defende também que “todos os homens foram criados iguais”, um grupo de jovens encapuzados passa a fazer rondas noturnas ao redor das casas dos negros com o intuito de assombrá-los. Com seu aspecto fantasmagórico, esses jovens agregaram outros cidadãos, espalhando o terror, agora espancando e chicoteando e até enforcando negros que ousassem circular pelas ruas a noite. Hoje aquele país já não vive situações de lixamento como ocorria até os anos 50 no século XX. No entanto, esses mascarados se apoiam no texto constitucional para se reunir e, inclusive, eleger membros no Congresso Nacional, além  de juízes na Suprema Corte Norte-Americana, segundo pesquisadores e jornalistas dos EUA.

A máscaras nas folias
Todos sabemos que Roma se deixou influenciar pela encantadora cultura grega, assimilando boa parte de seus símbolos e divindades, renomeando e adaptando vários elementos simbólicos e materiais à sua realidade. Dionísio e Baco são respectivamente mitos grego e romano apreciadores da festa e da celebração, cujos adoradores tinham as máscaras como forma de ilustrar as demais divindades a eles relacionadas quando em festa. Celebrar os deuses tornou-se, no entanto, algo espúrio, a partir da crença do deus único e supremo, coincidindo com a busca pela hegemonia religiosa de Roma. No entanto as festas pagãs pela Europa antiga passaram a ser toleradas pela igreja, considerando que seus devotos, na grande maioria, pobres aldeões, mantinham tais festas como forma de lazer e de vínculo comunitário.  Em nossas terras, exatamente pelo histórico de colonização cristã, essa festa carnal é tida como blasfêmia, ainda que, para a grande massa da população, essa seja uma oportunidade de vestir uma outra realidade ainda que  brincante, como um grande espetáculo cênico, como descreve Alan Villela Barroso (*):

Festejo advindo dos rituais dionisíacos, o carnaval mantém sua tradição em ser uma festa popular, voltada para as massas, pautada na liberdade e na diversidade de expressões, de danças, músicas, poesias e alegorias, sendo o público, o ator-folião, convidado a participar desta festa coletiva e simultânea, com adereços, máscaras ou fantasias, onde o mesmo observa, representa e experimenta personagens e papéis sociais, descobrindo-se em novas maneiras de fruir, sentir e explorar os prazeres do corpo, da mente e da carne (AV BARROSO, p. 06)

A “festa da carne”, como define a morfologia em latim da palavra carnaval, tem origem no século XI, ainda sem essa denominação, desenvolvendo peculiaridades aqui nos trópicos tupiniquins. A prática portuguesa e popular do carnaval no Brasil traz de Portugal a tradição do “Entrudo”, respeitando porém o calendário cristão vigente.  Essa prática muito apreciada por jovens portugueses que aqui viviam, trazia em si o hábito de perturbar os cidadãos e principalmente os negros escravizados, com o arremesso de frutas, bolas de água, entre outros métodos. Esses jovens se mascaravam e se reuniam em grupos para se embebedar e fazer balburdia, o que ocorria não apenas na Capital do império. Há relatos de festas de Entrudo por todas as regiões do país, sobretudo no século XIX, quando há um número maior de registros, por conta da proliferação de órgãos de imprensa. É claro que a festa, que tinha seu limite na quarta-feira de cinzas, contava com muitas brincadeiras em via pública que deixavam os mais velhos transtornados, tamanha a farra com banhos de barro, água, farinha ou ovos, que incomodava a todos, o que gerou interferência do governo, que proibiu o Entrudo em vias públicas. Já os pobre e escravos passaram, já no final do século XIX a sair às ruas brincando, em muitos casos pintando a face de branco, em chacota às festas que passavam a ser realizadas em clubes fechados e restritos às camadas mais abastadas.

Carnaval de Debret 1828: negros satirizando os brancos 
Foi, porém com o declínio dos bailes de máscaras realizadas em clubes, a partir da virada do século XX, que  o carnaval toma ares de festa popular de forma horizontal. O entrudo, ainda que em plena obediência ao calendário litúrgico católico, acabou criminalizado tanto pela igreja quanto pelo governo, que queria, por sua vez, se afastar ainda mais de qualquer tradição ligada à monarquia. Tem início então um processo de nacionalização do carnaval, que tem seu ponto alto a partir da Revolução de  30 liderada por Vargas, que adota o carnaval como festa popular genuinamente brasileira. A principal parceria para que isso fosse possível era a utilização do rádio como mecanismo de propaganda. A partir de então o carnaval passa a ter um caráter popular massificado e que, de uma forma muito interessante, mantém algumas características históricas, como é possível notar a partir da letra de Zé Ketti e Pereira Matos:

Tanto riso,
Oh! quanta alegria,
Mais de mil palhaços no salão
Arlequim está chorando
Pelo amor da Colombina
No meio da multidão!
Foi bom te ver outra vez
Tá fazendo um ano,
Foi no carnaval que passou,
Eu sou aquele Pierrot,
Que te abraçou,
E te beijou, meu amor,
Na mesma máscara negra
Que esconde teu rosto
Eu quero matar a saudade.
Vou beijar-te agora,
Não me leve a mal,
Hoje é carnaval!

A máscara e a crítica política
Uma peculiaridade do carnaval, seja em que tempo se dê ao longo de sua história, é a possibilidade da crítica social e política, sobretudo possibilitando algum tipo de expressão às camadas menos favorecidas da sociedade, em relação a sua percepção do mundo a sua volta. E essa expressão pode ser considerada uma forma de liberdade para a grande massa, que  já se deu conta de que o carnaval é o momento no qual a criatividade e sarcasmo podem dar vazão à sua indignação ou estranheza quanto a diversas situações que interferem em seu dia-a-dia. Bom exemplo disso é o sucesso que a Fábrica Condal adquiriu desde sua inauguração em 1958. 
Valles, em sua retomada na Abertura. Fonte: O Globo
Na ocasião, o artista plástico e ex-professor de escultura da Universidade de Barcelona, Armando Valles, que se instalou no Brasil em 1956, afirmou em entrevista ao Jornal O Globo em 1970, que as fantasias eram bastante elaboradas, mas que as máscaras eram grotescas, ainda que buscassem representar uma ideia. Valle passou a produzir máscaras com material sintético em larga escala, para distribuição em lojas de artigos para o carnaval, o que se tornou um estrondoso sucesso. Atendendo a uma demanda crescente, em 1961 o artista passou elaborar também máscaras de políticos, interrompendo a produção desse tipo específico em 1964 com o início da Ditadura, voltando a retratar figuras da política em 1995, a partir do processo de Abertura Política, quando Tancredo se tornou uma das personagens mais procuradas em suas obras. Valle faleceu em 2007, com a fábrica ainda se mantendo em atividade por mais dez anos, com a adesão em 2013 do artista plástico Gabriel Barros. No entanto a fábrica, que funcionava no bairro da Covanca em São Gonçalo-RJ, sob a direção da esposa e do filho de Armando Valle, encerrou suas atividades em 2019, prestes a completar 61 anos de atividades ininterruptas. Gabriel alegou que preferiu se dedicar à sua própria fábrica de máscaras em Duque de Caxias. 

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Referências:


COSTA, Felisberto Sabino. A Máscara e a Formação do Ator. Revista Móin-Móin, Jaraguá do Sul, SCAR/UDESC, ano 1, 2005;

Perny, Mônica Menezes. As máscaras de carnaval no cenário carioca : uma contribuição à memória social / Mônica Menezes Perny. — 2015

O Entrudo, primórdios do carnaval no Brasil:



ZANATTA, M. S. Nas Teias da Identidade: Contribuições para a Discussão do Conceito de Identidade na Teoria Sociológica. PERSPECTIVA, Erechim. v.35, n.132, p.41-54, dezembro/2011;


quarta-feira, 5 de fevereiro de 2020

FUNDAMENTALISMO CATÓLICO NA CULTURA? SIM, EM TODAS ELAS


"Atendendo vontade divina", é a justificativa de Regina Duarte para Cultura. foto:Pleno.News


Nada mais comum do que um governante intervir no modo de vida da sociedade, como ocorre hoje no Brasil. Nesse caso, acho que Regina Duarte está mesmo no lugar certo, por ser ela uma representante do segmento das artes cênicas e também uma fervorosa católica, segundo o que ela mesmo declara.

Se a gente pensar então que esteticamente cultura inclui um conjunto de símbolos e linguagens que refletem determinado modo de vida, podemos compreender as motivações de ministros e secretários desse governo, tomando como exemplo falas de Roberto Alvim, secretário anterior da Cultura e também profissional dos palcos. O diretor teatral católico fervoroso que alega ter sido curado de um câncer, defendia a horizontalização de valores tradicionais, para a nação. Em entrevista sua ao site de O Globo, edição de 19 de julho de 2019, Alvim sai em defesa do presidente que o acolheu, convocando a quem o mesmo  define como  “artistas conservadores”,  para criar uma “máquina de guerra cultural” em defesa do governo, referindo-se a foto de Fernanda Montenegro que posa fantasiada de bruxa sobre uma pilha de livros. 
  
Se considerarmos as relações históricas entre fé e poder, veremos que não há interferência tradicional mais duradoura que as da igreja católica. É lembrar que dominação e determinismo moral são ditados pelo Vaticano há séculos, interferindo em diversas culturas. Agora, quando Regina Duarte (também católica fervorosa) alega cumprir uma "vontade divina" ao assumir a pasta, fica claro que definitivamente não é possível debater cultura com esse tipo de líder político ou com quem o apoia, considerando que é impossível discutir com Deus, pelo menos com esse, em quem o atual governo apoia suas ideias. Cabe lembrar mais uma vez que vem de longe essa ideia de tomar o poder tendo uma visão particular de Deus como estratégia, usando uma série de dogmas e símbolos como meio legitimação do poder e a história está repleta de exemplos.

 Pepino, o Breve (assim chamado por ser baixinho e não pelos seus dezessete anos no poder), é considerado o primeiro nobre a ser consagrado rei sob as bênçãos da igreja. A historiadora Maria do Carmo Parente Santos em sua obra “As relações de poder entre a Igreja e o Estado francês no séc. XII” nos diz que aquele nobre usurpou um trono que naturalmente seria ocupado por membro de outra dinastia:

Pepino então ousou. Para ele tratava-se de legitimar sua autoridade ligando-a não à ordem humana - falha, sempre precária e por isso mesmo passível a todo momento de contestação - mas alicerçá-la através da ligação com a própria ordem sobrenatural e transcendente e, por conseguinte, incontestável. sobrenatural e transcendente e, por conseguinte, incontestável. Assim, apela para o papa no sentido que reconheça seu direito ao trono. Zacarias [o papa] ao atender ao apelo de Pepino e aprovar sua permanência como rei dos francos também o faz atendendo à diretriz de estabilidade do corpo social, viga mestra na construção a que persistentemente os ideólogos da Igreja vinham se dedicando, a idéia de ordem humana como reflexo da ordem divina, a sociedade humana como resultado da vontade de Deus (p. 393).
 Está dado aí o fechamento ideal entre duas forças que têm projetos de poder a longo prazo. De um lado, um valoroso comandante militar que almeja ser rei, mas que não se legitimaria naturalmente, pois era o terceiro filho de Felipe I. Pepino se articula com o clero e é então coroado com base em seu discurso de poder estabelecido por outorga do próprio Deus. Por outro lado, o Papa carecia de forte apoio militar, haja vista os constantes roubos ao patrimônio eclesiástico comprometiam o poderio financeiro e patrimonial da igreja, que tinha claros projetos de expansão, mas não poderia contar com tropas, por conta da natureza de seu discurso. A partir de então, o conjunto formado pelo poderio militar, aliado a onipotência divina poderia daí por diante, ser resumida a figura do rei, como figura santificada. Essa forma de dominação seria tempos depois imitada pelos demais monarcas europeus, método que criou lastro em muitos outros níveis de poder como o judiciário, vide o hábito que se seguiu, de imposição da mão sobre a bíblia em juramento. 
 
Luis XIV:um rei fabricado. foto: Wikipedia
No entanto precisamos ter clareza de que uma imagem ou uma ideia não pegam assim, com tanta facilidade, sobretudo à medida que o tempo passa. É necessário que haja um empurrãozinho para que as ideias de um novo mandatário entrem no imaginário coletivo, principalmente se for o caso de tal figura surgir com determinações muito diferentes dos que assumiram o poder antes dele. Ou seja, a estratégica ideia de criação de um mito político tal como vemos hoje no Brasil, também tem escola. Luis XIV, chamado por seus admiradores de “Deus Sol”, adotou estratégias “marqueteiras” de convencimento de seu povo, já no Século XVII, podendo ser considerado um dos primeiros casos em que o artista se associa ao poder, em benefício mútuo.  Anacronismo a parte, esse monarca tem paralelo com o que vemos hoje, quando pensadores e artistas se colocam a serviço de uma imagem a ser firmada na cabeça do povo. Segundo Peter Burke (1994):

As ideias do século XVII sobre a relação entre arte e poder podem ser dispostas ao longo de um espectro. De um lado havia os escritores que pareciam conferir  imagem real seu valor nominal, fossem eles poetas a escrever odes ao rei, historiadores a narrar suas vitórias ou eruditos a descrever as decorações de Versailles. Descreviam estátuas e outros monumentos como meios de ‘instruir o povo’, incentivando-o a amar seu príncipe e obedecê-lo (p.17).
 O fato é que os monarcas medievais foram transformados em mitos, em boa medida por artistas que vieram depois deles, enquanto os estadistas contemporâneos se utilizam de recursos mais ágeis como a internet, de modo a massificar em tempo real as ideias que os colocaram e os mantém no poder. A estratégia de hoje é  criação de uma imagem mitológica e até metafísica, que se adapte a cada nova demanda pela consolidação da imagem, buscando criar consenso na sociedade. O discurso do medo, que Regina Duarte eternizou, quando na eleição de Lula em 2002, também não representa nenhuma novidade. Grupos católicos conservadores mantêm a prática de embasar doutrinariamente seu apoio a seja qual for o governo que se coloque frontalmente contra os princípios do clero.

Marcha das Familias com Deus, frases como as de hoje. foto: Bruno Toscano
Podemos citar como exemplo os fatos que motivaram o golpe de 1964, quando a parcela conservadora e mais influente da igreja se colocou contra o que determinou o Concílio Vaticano II (1961), sob o comando do Papa João XXIII.   No documento da igreja constavam orientações quanto ao zelo dos clérigos por valores voltados a justiça social e defesa dos Direitos Humanos, determinação que a camada dominante da sociedade ligada a igreja católica, ignorou sem pestanejar. As reformas de base projetadas por João Goulart não eram do agrado de latifundiários, economistas e  membros do judiciário a época, que entendiam ser mais seguro apoiar uma intervenção militar do que as incertezas de um governo simpatizante do comunismo. Nesse sentido, cerca de meio milhão de católicos realizam a “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”, realizada no dia 19 de março de 1964, dia de São José, padroeiro das famílias.
Para que possamos ter uma noção clara da relação entre os discursos conservadores daquela passeata com o que vemos na atualidade, basta dar uma olhada em alguns cartazes que os manifestantes levaram, trazendo frases como: “Vermelho bom, só batom”, “Um, dois, três, Brizola no xadrez”, “Verde Amarelo, sem foice e sem martelo”, “Tá chegando a hora, de Jango ir embora”, "O Kremlin não compensa", "Abaixo o entreguismo vermelho", "A melhor reforma é o respeito à lei", "Chega de palhaçada, queremos governo honesto".

O que posso concluir é que o fundamentalismo católico é especialmente perigoso à sociedade, pois é diferente do radicalismo protestante que, em sua maioria, conta com seguidores pouco instruídos e de baixa afinidade com a leitura, em decorrência de sua baixa renda e pouco tempo de escolaridade. Já a média de escolaridade dos católicos é mais elevada, além de sua faixa de renda que supera os radicais evangélicos.  Cabe observar que a capacidade de articulação interna e externa dos radicais católicos em relação ao restante da sociedade, é bem maior, ainda que os evangélicos sejam em maior número.   Em 2015, um grupo de católicos ligados ao Instituto Plinio Corrêa de Oliveira (IPCO), entidade privada que, segundo seu estatuto, visa zelar por uma “defesa da Civilização Cristã”, fez pressão sobre o Papa Francisco. A instituição, que tem sede em São Paulo e que dá suporte intelectual a católicos por todo território nacional, lançou um abaixo assinado que foi encaminhado ao Sumo Pontífice. 
Trata-se de uma coleta de assinaturas – em vista do próximo Sínodo sobre a Família, que ocorrerá em outubro de 2015 – a ser enviada ao Papa Francisco solicitando uma palavra esclarecedora para superar a crescente confusão entre os fiéis, causada pelas informações veiculadas por ocasião do último Sínodo, sobre a “possibilidade de que se tenha aberto no seio da Igreja uma brecha que permite a aceitação do adultério – mediante a admissão à Eucaristia de casais divorciados recasados civilmente –, e até mesmo uma virtual aceitação das próprias uniões homossexuais, práticas essas condenadas categoricamente como contrárias à Lei divina e natural
 Segue o link do documento na íntegra.

Mais adiante, em 2019, o mesmo grupo se envolve no enfrentamento ao Sínodo da Amazônia, encontro de religiosos católicos com o Papa, que discute o papel da Igreja em relação a questões ambientais no Brasil. o documento de trinta páginas discute, entre outros pontos, seu papel missionário, defendendo por exemplo a ideia de uma “Igreja samaritana, misericordiosa, solidária (...) em diálogo ecumênico, inter-religioso e cultural”. 

Para o Papa Francisco a missão da igreja é o ser humano. foto: O Globo
Em documento enviado ao encontro, o IPCO entende que o mesmo se destina a uma “utopia comunotribalista pela qual uma minoria de antropólogos neomarxistas pretende manter nossos irmãos indígenas no subdesenvolvimento, confinando-os num gueto étnico-cultural, verdadeiros ‘zoológicos humanos”
Vale observar que simultaneamente, ocorria um encontro no hotel Quirinale, em Roma, com aproximadamente 200 pessoas, com a participação palestrantes expoentes do catolicismo conservador, incluindo o deputado Eduardo Bolsonaro. A tônica desse encontro foi a busca por estratégias capazes de barrar o que o IPCO chamam de “esquerdização da igreja”. Em matéria de 11/10/19, o Blog da Cidadania traz parte de um documento expedido pela instituição, afirmando que o zelo daquele coletivo não se dá no sentido de criar cisão na igreja,  “Mas de trabalhar para que não haja excessos, distorções e perversões da fé católica de 2.000 anos”, como se fosse possível cristalizar a sociedade em suas forma diversas, durante tanto tempo.

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Referências: 
BURKE, Peter. A Fabricação do Rei: a construção da imagem pública de Luis XIV. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1994;
Maria do Carmo Parente Santos. LUÍS VI E SUGER As relações de poder entre a Igreja e o Estado francês no séc. XII. disponível em: http://dx.doi.org/10.15448/1984-6746.1995.159.35991