terça-feira, 16 de março de 2021

CULTURA E ISOLAMENTO SE ENCONTRAM EM MEIO A SINDEMIA

Cultura e prepressão
"Atenção especial" do 20ºBPM à Festa de Arremate no bairro da Chatuba-Mesquita 

    Durante todos esses anos, nos quais venho atuando junto ao Centro de Cultura Popular da Baixada Fluminense, uma pergunta sempre ressurge: "qual o motivo de existir tanta repressão e desconhecimento quanto as expressões culturais atuantes em regiões periféricas?" A resposta que mais se aproxima da realidade é que as políticas públicas ainda privilegiam as expressões estéticas tradicionais ou midiáticas, em detrimento de manifestações coletivas na base da sociedade. Nesse texto me debruço sobre a ideia de Cultura Popular difundida pelos teóricos da cultura, sem que a formulação de ideia dos mesmos, contudo, interfira efetivamente na mudança de olhar do poder público, bem como da sociedade sobre tais grupos. Para pensarmos melhor sobre o tema, tomamos como exemplo a dificuldade com a qual ainda lidamos com eventos globais de saúde pública, ainda que tais agravos tenham amostragem no nosso lugar. Por isso mesmo não apenas ignoramos e criminalizamos quem pensa saúde de forma coletiva de forma séria e embasada, além de difundir a lógica da "gripezinha", subestimando a capacidade de adaptação e proliferação de tantas formas invisíveis de vida. Nessa analogia não trazemos para a roda o lado nocivo da Covid-19, mas seu notório desejo de existir e se adaptar para se manter vivo, ainda que de forma incompreendida pelos seres mais evoluídos. Não seria essa uma boa analogia entre esses seres minúsculos e as expressões na base da sociedade que chamamos de cultura popular?


Em vídeo publicado no portal da BBC News Brasil no YouTube, a repórter Taís Alegretti descreve a diferença entre pandemia e sindemia, mostrando que a segunda palavra é oriunda da junção entre sinergia, quando ocorre ação motivada pela associação entre dois ou mais órgãos ou mesmo sistemas, com uma finalidade específica e endemia, doença que ocorre em determinada região ou população. 


Ocorre que as novas variantes do Novo Coronavírus deixam claro que de fato, enquanto seres vivos, os vírus podem assumir uma forma de vida muito particular, interagindo com seu habitat, sobretudo quando associados a outros vírus ou condições ambientais favoráveis. Com isso, a relação entre Sindemia e cultura popular se dá, considerando a propriedade que ambas têm, de seguir o rumo de sua existência, ignorando a nomenclatura e metodologia hegemônica. O que pretendo com essa  analogia é levantar algumas ponderações relacionadas aos motivos que levam os poderes constituídos a minimizar a importância de um olhar amplo sobre práticas de saúde pública bem como de culturas populares, postas à margem das macropolíticas setoriais.


Bate Bola anos 2000
Clóvis, em 2020

Bate-bola, em 1987

    Outra ponderação que posso colocar aqui é que poucas situações são tão simbólicas na sociedade contemporânea como as que vemos nas discussões no campo da cultura, que se estabelece por exemplo entre povos indígenas. Quando observamos relatos ou documentários relacionados ao cotidiano de povos nativos, com suas práticas que envolvem o ensino de crianças, formação de novos adultos, além da maneira com a qual os mais velhos aceitos e difundem valores assimilados pelos mais novos, entendemos o quanto tudo ali está profundamente interligado. Por outro lado, as populações urbanas tendem a fragmentar as diversas facetas da vida em sociedade, fazendo distinção entre fatores diretamente ligados, como hábitos alimentares e economia, por exemplo ou religiosidade e formação política.


    

    O que abordamos aqui é o fato de observarmos a fragmentação da vida em sociedade através dos olhos de quem formula teoricamente questões ligadas a vida em comum, não tomando como prioridade a impressão dos indivíduos em questão sobre as próprias práticas.  Segundo Roger Chartier, a ideia de cultura popular é uma categoria que, no que se refere a sua nomenclatura, não parte de quem pratica, mas de quem observa, formula e conceitua, a colocando fora da esfera erudita, sempre sob interpretações e descrições restritas a determinado ponto de vista (Cartier, 1995). Ou seja, as pessoas em seu cotidiano não olham a vida de maneira fragmentada, ponderando os impactos dos hábitos alimentares sobre sua  sociabilidade, por exemplo. 


Festa de folia de reis: comunidade envolvida


    Homens, moradores de áreas periféricas, têm em muitos casos o hábito de ir ao futebol no domingo, fechando a manhã com uma cervejinha no bar, do mesmo modo que tal prática ocorre no subúrbio ou mesmo em alguma região mais abastada. Vemos assim que o desejo de realizar essa prática social não passa inicialmente por questões como a marca da cerveja a ser consumida ou mesmo se o campo é de várzea ou de grama sintética. Assim, a relevância dessa prática coletiva supera uma avaliação quanto à “vida financeira” dos participantes, seja em qual for a região habitada por determinado grupo de homens. O ato de realizar uma prática desportiva como forma de lazer transcende então as barreiras sociais e locais, sem que os envolvidos tenham a preocupação de realizar de forma sazonal um tipo de atividade a ser inserida na "vida social". Vemos também que práticas culturais podem transcender de sua esfera local para a global, superando aquela ideia de "coisa de rico" ou "coisa de pobre", dando lugar a algo horizontalizado e de igual modo identitária, seja em qual camada social ocorra.


    No que se refere então ao contexto das culturas populares, ocorre exatamente da mesma forma. Uma comunidade nativa não distingue, por exemplo, questões como  vida amorosa ou vida social por exemplo, fragmentando questões que estão diretamente interligadas, daí a definição tão particular de alguns modos de vida. Se por um lado nossa sociedade urbana e metropolitana lida com a heterogeneidade contida num contingente que pode chega a milhões de habitantes, vemos que pequenos grupos gozam do que o autor citado chama de “autonomia simbólica” em relação ao conjunto de culturas urbanizadas ou mesmo alguma análise erudita. O que vemos hoje, no que se refere às culturas populares, é enfim uma reedição do histórico modelo de invisibilidade dos pequenos grupos diante do Estado e uma busca por interpretação particular de dogmas religiosos. 


Leonora, Folia Flor do Oriente em Caxias: tradição de 150 anos

    

    Nesse período de pandemia percebemos uma particular distinção entre cultura hegemônica e cultura popular. Enquanto produtores e técnicos cobram, com razão, o pleno acesso aos recursos da Lei 14017/20, conhecida popularmente como Lei Aldir Blanc, lei que direciona recursos do Fundo Nacional de Cultura à chamada cadeia produtiva da cultura, grupos de Clóvis ou mestres de folias de reis conduzem suas tradicional agenda, ainda que de maneira precária, em relação ao período pé pandemia. Ocorre que esses grupos alternativos já vêm de um histórico de abandono e invisibilidade, tanto no que se refere ao estabelecimento de políticas públicas quanto em relação ao histórico estigma  que carregam, sob os olhos de instituições religiosas católicas e protestantes. 


    Os dois segmentos de nossa cultura popular citados acima têm como caraterística fundamental a “saída” em cortejo, não apenas em suas comunidades, como também em outros locais, sejam esses recebidos por grupos de mesmo gênero ou em encontro com os mesmos em locais previamente definidos, o que ocorre também nesse momento de isolamento social. Como compreender então o motivo de não ocorrer  em 2021 desfiles de agremiações carnavalescas que, de igual modo, realizam cortejos em vias públicas? O fato é que as agremiações carnavalescas gozam de maior visibilidade e credibilidade junto à estrutura estatal, em relação aos grupos de bate-bola e Clóvis, vistos comumente como grupos marginalizados, em relação às festas carnavalescas. O entendimento que temos nesse contexto é o fato de ser muito comum a falta de traquejo dos gestores de cultura no trato, em relação às identidades contidas no segmento de cultura popular. essa heterogeneidade, ainda que dê conta da diversidade contida na cidade, não atende a necessidade de horizontalizar a gestão da cultura e suas políticas decorrentes. 


    Nesse momento, no qual o isolamento social tem sido a palavra de ordem mais ignorada de todos os tempos, fica claro que o isolamento cultural é o que temos de endêmico em nossa sociedade. Sociedade essa que assimilou o que é fragmentação mas não alcança a ideia singularidade, muito provocada pela dupla fé e poder, que se aliam, em busca de uma hegemonia bastante conveniente. Independente de tudo isso, vemos grupos que se mantém vivos e ativos alí, bem debaixo de nosso olhos. o fato é que, assim como ocorre com determinados indivíduos indesejados por muitos à nossa volta, grupos que integram a base de nossa cultura popular muitas vezes são invisibilizados, entendendo que invisíveis, definitivamente não são. Esses grupos interagem, difundindo de forma "sindêmica" suas práticas.


--------- Mais detalhes em:

- SANTOS, Boaventura de Sousa. Direitos humanos: o desafio da interculturalidade. Revista Direitos Humanos, n. 2, p. 10-18, 2009.

- Cultura popular: revisitando um conceito historiográfico - Roger Chartier

- https://www.youtube.com/watch?v=7C_1vmhvLMA