Tenho ouvido há tempos vários
agentes culturais e produtores da Baixada Fluminense se queixando do velho
discurso de “fazer cultura” na gestão pública, taxando como provinciana tal atitude
ou fala dos gestores. “A cultura não é
valorizada por aqui porque a mentalidade desses caras é tacanha”, diz quase
em coro a classe artística nessa minha Região. O que vemos, no entanto, é uma
tendência que se avoluma desde 2016, quando ocorre o que o próprio
Ex-presidente Temer chamou de “golpe”. Vemos desde então que grande parte da
sociedade política perdeu a vergonha de tentar assumir sozinha os rumos da
coisa pública, buscando estabelecer um formato conveniente de país, que garanta
privilégios e poder aos que já os tem de sobra. Em decorrência disso uma
verdadeira queda de braço vem sendo travada entre a deformada Direita
brasileira, que prega um liberalismo de mercado e as forças políticas
progressistas, que defendem o que diz a Constituição, quando define o seguinte
no Art. 1º, Parágrafo Único. “Todo o poder emana do povo, que o exerce por
meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta constituição".
Ou seja, a sociedade deve manter a lógica de mudança na forma que melhor
convier ao povo, e a seu tempo. E, caso necessário, que se elejam
representantes aptos para isso.
A parcela da sociedade política
que representa os interesses dos grandes empresários e do mercado financeiro,
no entanto, já encontrou a saída a seu modo, para manter o povo quieto e
obediente. A boa e velha relação entre fé e política voltada a manter o poder
da forma como está, não é de hoje nem de ontem, tem sido o mecanismo mais prático
e eficaz dos governos, em todos os níveis. Se no início da colonização
brasileira a “Companhia de Jesus”, criada por Inácio de Loyola no Sec. XVI, já
trazia para o Brasil um modelo de civilização a ser estabelecido, vemos que
hoje o antagônico protestantismo nos trás uma forma evoluída e contemporânea de
dominação ideológica. Vejam que em seu primeiro discurso público como prefeito
eleito do Rio de Janeiro, Crivella reafirmou seu mote de campanha, ao dizer que
“Vamos cuidar das pessoas”, o que não destoa da interpretação de qualquer
pastor evangélico, em obediência a um preceito bíblico. Segundo consta do
Evangelho de João, Jesus disse a Pedro, o patriarca da Igreja: “Apascenta as
minhas ovelhas.” (João 21:16)
O fato é que essa declaração de Jesus, cujas palavras têm conotação metafísica,
são consideradas hoje um imperativo tido como outorga divida a uma
interferência no cotidiano da sociedade, por parte de um “povo escolhido”,
portador da verdade absoluta.
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Pires com Vereza: pediu pra sair por não admitir "filtros" em sua gestão (foto: Clara Angeleas) |
Se entendermos então que o tal
“pensamento provinciano” já não cabe nos dias atuais, por estar em voga um projeto
de dominação em esfera nacional, podemos ao menos afirmar que o termo
“mediocridade” se encaixa melhor no projeto de “criação” de uma nova cultura.
Se nos lembrarmos que no período de um ano a pasta da cultura pode ser mudada
pela quarta vez no âmbito do governo federal, veremos que o governo Bolsonaro
quer mesmo encontrar um caminho “do meio”. Entre o abandono de um discurso
progressista de Esquerda e a necessidade de estabelecer um modelo de gestão que
possibilite a quietude e a ausência de questionamentos por parte da população e
geral. Junte a isso a compreensão desse governo que de fato cultura tem haver
como modo de vida e comportamento social e os secretários nomeados por
Bolsonaro para a pasta da cultura, dá o tom bem afinado daquilo que esse
governo deseja implementar como modelo de sociedade. Henrique Pires, por exemplo,
ainda que o secretário mais longevo ate o atual momento, sendo indicado logo ao
final da campanha eleitoral de 2018, entregando, no entanto seu cargo em agosto
de 2019, por não concordar com a imposição de “filtros” na escolha de produtos
culturais aptos a captar recursos federais. Seu sucessor, o economista Ricardo
Braga, assume a Secretaria Especial da Cultura com a missão de sanear e dar eficiência
administrativa à gestão permanecendo, no entanto, apenas dois meses, quando
assume o tão comentado Roberto Alvim, que anteriormente esteve à frente da
FUNARTE, já criando ali celeumas com a classe artística, ao criticar
publicamente a atriz Fernanda Montenegro. Em matéria publicada na Folha de São Paulo em
23 de setembro de 2019, Alvim diz o seguinte, referindo-se ao monólogo encenado
pela atriz, sobre Simone de Beauvir:
“Eu assisti à peça, infelizmente: uma nulidade estética completa, na
qual Fernanda fala monocordicamente por mais de uma hora acerca das sórdidas
aventuras sexuais de Beauvir, e ‘heroizava’ sua mentalidade revlucionária. Não se
tirava, daquele monólogo, nada que preste (...) Já nutri alguma admiração por
ela. Hoje, só o que sinto por essa mulher é o mais absoluto desprezo. Triste
fim de carreira”.
No mesmo mês Alvim, que se
considera católico fervoroso, conclama artistas a criar o que ele mesmo de
chama de “máquina de guerra cultural”, em defesa do governo Bolsonaro e de
valores “da maioria da população”, como ele mesmo declara, na condição de ateu
convertido, após sua suposta cura de um câncer no estômago.
O que podemos concluir desse
grande nó ideológico no qual nos encontramos hoje, é que esse governo não tem e nem demonstra o mínimo desejo de ter um olhar horizontal sobre nossa
diversidade cultural. O governo Bolsonaro tem se mostrado como um retrato vivo
do individualismo e do aparelhamento do Estado como forma de enriquecimento e
benefício de pequenos grupos. Tal fato
fica claro quando percebemos que esses grupos não se envergonham de se associar
a figuras com mentalidade de igual modo distorcida, contanto que tais cabeças
sirvam ao varejo ideológico que se pretende estabelecer. A ideia então é
inverter a lógica, de maneira que a sociedade assimile um conjunto de dogmas e
crenças, de tal modo que o direito de expressão de pequenos grupos seja
reprimido, não mais por agentes públicos, mas pelas “pessoas de bem”, de modo que o
politicamente correto se torne então a verdade dessas mentes medíocres.
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