A sociedade na qual vivemos, com sua
estética e comportamentos preestabelecidos, é inegavelmente uma forma de
ditadura bem peculiar. Partilhamos e absorvemos uma hegemonia cultural tão
pesada, que precisamos de algum mecanismo de proteção individual ou
esconderijo, que nos permita fugir da formatação social que nos oprime. A
máscara é então uma forma de esconder ou até revelar o que verdadeiramente é
uma pessoa ou pequeno grupo de pessoas que enfrentam um conflito particular.
Nós, que hoje assumimos viver em bolhas sociais, em muitos casos precisamos de
uma maneira de estar invisíveis em outros grupos e assim, deixar numa gaveta a
verdade sobre quem de fato queremos ser. Na ficção a máscara esconde tanto o
herói quanto o vilão, que se abrigam de si mesmos, seja por vergonha ou por
trauma, causados por aquilo para que foram criados. Na arte ou na festa a
máscara, é por sua vez, aquilo que nos permite flutuar fora da bolha, nos misturando com outros que se agregam a um personagem coletivo, onde os iguais
se defendem ou até mesmo atacam de forma orquestrada.
Máscara de tragédia grega - fonte ignorada |
Os gregos antigos nos possibilitaram
fazer uso do que a sociologia chama hoje de "máscara social", ao
adotarem faces pré definidas com características pessoais típicas ao meio, o
que era representado a partir de padrões que as pessoas observavam em seu dia a
dia. Algo tão marcante que se tornou inclusive símbolo do teatro hoje. Quando o
ator "se mascara", ilustrando assim outra pessoa em determinado
contexto, percebemos que esse artista pouco difere do que acontece conosco, quando
“vestimos” um personagem, seja para uma conquista amorosa ou entrevista de
emprego, por exemplo. Segundo Felisberto Sabino (2005), “O ator
relaciona-se com o mundo sob a perspectiva de um outro ser” (p.03) e essa é uma
lógica que nos envolve a todos, naquilo que chamamos de “vida real”. O que a
realidade cotidiana difere dos palcos é que identidade é uma escolha, diferente
de um personagem elaborado por um roteirista, ainda que, em ambos os casos
exista um papel pré estabelecido em um roteiro tanto social quanto teatral.
Ou seja, para a sociologia a identidade é fruto da socialização, que por sua
vez, varia de tempos em tempos. Em sua obra “Espelhos e Máscaras” 2011, Anselm
Strauss discute um conjunto de ideias que dizem respeito ao “eu” e seu lugar na
coletividade, mostrando que “as interações acontecem entre indivíduos, mas os
mesmos também representam – em termos sociológicos - coletividades diferentes
e, muitas vezes, múltiplas que se estão expressando por meio das interações”.
podemos entender então que é possível que uma pessoa tenha uma postura no
trabalho e outra totalmente diferente quando vai ao samba ou à igreja e para que
isso ocorra, é necessária ao indivíduo uma postura condizente com cada um
desses lugares.
A ideia da máscara cabe como elemento
que ilustra bem um contexto social de proteção ou escolha do “eu”. Um capacete
ou um elmo medieval por exemplo, protegem a cabeça de estilhaços ou golpes,
enquanto o uniforme cria identidade de grupo e principalmente define
hierarquia. Já a máscara, enquanto objeto fetichizado, representa a autonomia
do indivíduo em relação um grupo, resguardando a identidade, enquanto revela o
caráter do indivíduo ou de um coletivo, o que percebemos logo no primeiro olhar. Posso pensar
que é exatamente por isso que os deuses egípcios têm corpo humano e cabeça de
animal, considerando que a natureza que lhes é atribuída em família já não é
capaz de retratar sua identidade em gerações egípcias posteriores. O Deus Hórus,
por exemplo, surge como deus do silêncio e da sabedoria, mudando radicalmente
tempos depois, quando lhe é dada uma cabeça de falcão, simbolizando seu olhar
sobre onisciente sobre todo povo egípcio. O fato é que a forma como se
desenvolve a interação em sociedade, coloca pessoas como personagens ligadas a
um roteiro e não como indivíduos ou protagonistas, omitindo suas identidades. É
por esse motivo que, sob o ponto de vista sociológico, a ideia de máscara social se
encaixa perfeitamente a estratégia de fuga a qual cada indivíduo pode recorrer,
sempre que uma tradição, doutrina ou pacto social já não lhe faz mais sentido.
Já no aspecto material, tanto na
realidade quanto na ficção a máscara se presta tanto ao lícito quanto ao
ilícito. Longe da ideia insegurança pessoal ou como reflexo de uma patologia, a
máscara pode servir para encobrir ações tanto da justiça quanto do crime,
muitas vezes distante do engraçado ou do romântico que os filmes e séries nos
apresentam, mostrando que o vilão tem no fundo algo bom que nos cativa. O fato
é que a história está repleta de fatos revolucionários, heroicos ou cruéis, nos
quais indivíduos impõem o terror ou engendram lutas democráticas como forma de
controle social ou tomada de poder. A máscara então encobre ações de seus
usuários, haja vista que, no que diz respeito senso comum, as atitudes do então
mascarado ou seu grupo são invariavelmente injustificáveis, daí o recurso do
encobrimento da identidade, possibilitando que, sem ela, criminosos e
justiceiros circulem incógnitos entre nós.
A máscara e a ideia de unidade
Série La Casa de Papel: mascara de criminosos viralizou. foto: Netflix |
O fator que contribui de forma
significativa para que a máscara se torne elemento de reforço dramático nas
telas é seu uso como símbolo de unidade em um grupo. Diversos filmes e séries,
alguns de estrondoso sucesso, nos mostram o fascínio que grupos de mascarados
exercem sobre as pessoas, há gerações. São vários os exemplos dos quais podemos
fazer uso para ilustrar tal fato, exemplos esses que podem ser positivos ou
negativos sob o ponto de vista também de cada grupo ou
indivíduo.
Subcomandante Marcos, um dos líderes do EZLN |
Na década de 90 no México surge um
movimento armado paramilitar que chamou a atenção não só de seus patrícios mas
também viralizou na mídia internacional. O Exército Zapatista de
Libertação Nacional (EZLN), liderado pelo autodenominado Subcomandante Marcos,
inicia em 01 de janeiro de 1994 uma marcha de mobilização nacional em favor dos
direitos de povos indígenas. O grupo armado do EZLN que era composto
majoritariamente por indígenas, fazia uso dos capuzes como forma de
horizontalizar a liderança, ainda que Marcos tenha sido visto pelo mundo como orador mais
eficiente e carismático. Uma mobilização nacional levou centenas de milhares de
pessoas à Capital, levando o então presidente Vicente Fox a propor um acordo,
atendendo assim a reivindicações daquele movimento. Com os avanços positivos em
relação às reivindicações e a ampliação da capacidade política da EZLN, o grupo
opta em 2005 a se registrar como partido político, denunciando as estruturas de
poder, voltadas a concentração de riqueza e impedimento de ascensão das mais de
sessenta nações indígenas mexicanas. Os encapuzados da EZLN, ainda que tenha se consolidado como grupo paramilitar armado, se tornou símbolo internacional de resistência popular.
Mas a história do
movimento de pequenos grupos identitários não é formada apenas de levantes
populares munidos de valores e propósitos dignos. É difícil compreender como a
nação mais rica e desenvolvida do planeta ainda reproduz práticas
discriminatórias do século XIX. É exatamente no Século XXI que
percebemos, através da eleição de Barack
Obama a presidente, que organizações racistas adormecidas naquele país, apenas precisavam de um motivo para eclodir
com plena força. E a liberdade com a qual esses grupos se manifestam, tem respaldo na
própria Constituição. O texto da 1ª Emenda que ao mesmo tempo afirma defender a
igualdade entre as pessoas, também dá base para que grupos radicais se
manifestem livremente em todo país. O texto constitucional diz o seguinte:
"O
congresso não deverá fazer qualquer lei a respeito de um estabelecimento de
religião, ou proibir o seu livre exercício; ou restringindo a liberdade de
expressão, ou da imprensa; ou o direito das pessoas de se reunirem
pacificamente, e de fazerem pedidos ao governo para que sejam feitas reparações
de queixas".
KKK no séc. XIX: finalidade de assustar e reprimir os negros no Sul dos EUA Fonte: listeningbetweenthelines.org |
A ku Klux Klan,
organização que usa a chamada “máscara do orgulho americano”, tem seu início oficialmente no
ano de 1865, no estado do Tennessee, Norte dos EUA. Com o fim da Guerra Civil
Norte-Americana, era um absurdo para os brancos conservadores da Região, ver um
crescimento exponencial no número de negros que ocupavam cargos políticos
e na hierarquia militar. Avessos ao texto da 1ª Emenda, onde a Constituição
defende também que “todos os homens foram criados iguais”, um grupo de jovens
encapuzados passa a fazer rondas noturnas ao redor das casas dos negros com o
intuito de assombrá-los. Com seu aspecto fantasmagórico, esses jovens agregaram outros
cidadãos, espalhando o terror, agora espancando e chicoteando e até enforcando negros que
ousassem circular pelas ruas a noite. Hoje aquele país já não vive situações de
lixamento como ocorria até os anos 50 no século XX. No entanto, esses
mascarados se apoiam no texto constitucional para se reunir e, inclusive,
eleger membros no Congresso Nacional, além de juízes na Suprema Corte
Norte-Americana, segundo pesquisadores e jornalistas dos EUA.
A máscaras nas folias
Todos sabemos que
Roma se deixou influenciar pela encantadora cultura grega, assimilando boa
parte de seus símbolos e divindades, renomeando e adaptando vários elementos simbólicos e materiais à sua realidade.
Dionísio e Baco são respectivamente mitos grego e romano apreciadores da festa
e da celebração, cujos adoradores tinham as máscaras como forma de ilustrar as
demais divindades a eles relacionadas quando em festa. Celebrar os deuses
tornou-se, no entanto, algo espúrio, a partir da crença do deus único e
supremo, coincidindo com a busca pela hegemonia religiosa de Roma. No entanto
as festas pagãs pela Europa antiga passaram a ser toleradas pela igreja,
considerando que seus devotos, na grande maioria, pobres aldeões, mantinham tais festas como forma de lazer e de vínculo comunitário. Em nossas
terras, exatamente pelo histórico de colonização cristã, essa festa carnal é
tida como blasfêmia, ainda que, para a grande massa da população, essa seja uma
oportunidade de vestir uma outra realidade ainda que brincante, como um grande espetáculo cênico,
como descreve Alan Villela Barroso (*):
Festejo
advindo dos rituais dionisíacos, o carnaval mantém sua tradição em ser uma
festa popular, voltada para as massas, pautada na liberdade e na diversidade de
expressões, de danças, músicas, poesias e alegorias, sendo o público, o
ator-folião, convidado a participar desta festa coletiva e simultânea, com
adereços, máscaras ou fantasias, onde o mesmo observa, representa e experimenta
personagens e papéis sociais, descobrindo-se em novas maneiras de fruir, sentir
e explorar os prazeres do corpo, da mente e da carne (AV BARROSO, p. 06)
A “festa da carne”, como define a
morfologia em latim da palavra carnaval, tem origem no século XI, ainda sem
essa denominação, desenvolvendo peculiaridades aqui nos trópicos tupiniquins. A
prática portuguesa e popular do carnaval no Brasil traz de Portugal a tradição
do “Entrudo”, respeitando porém o calendário cristão vigente. Essa
prática muito apreciada por jovens portugueses que aqui viviam, trazia em si o
hábito de perturbar os cidadãos e principalmente os negros escravizados, com o arremesso de frutas, bolas de
água, entre outros métodos. Esses jovens se mascaravam e se reuniam em grupos
para se embebedar e fazer balburdia, o que ocorria não apenas na Capital do império. Há relatos de festas de Entrudo por todas as
regiões do país, sobretudo no século XIX, quando há um número maior de
registros, por conta da proliferação de órgãos de imprensa. É claro que a festa, que
tinha seu limite na quarta-feira de cinzas, contava com muitas brincadeiras em
via pública que deixavam os mais velhos transtornados, tamanha a farra com
banhos de barro, água, farinha ou ovos, que incomodava a todos, o que gerou
interferência do governo, que proibiu o Entrudo em vias públicas. Já os pobre e
escravos passaram, já no final do século XIX a sair às ruas brincando, em
muitos casos pintando a face de branco, em chacota às festas que passavam a ser
realizadas em clubes fechados e restritos às camadas mais abastadas.
Carnaval de Debret 1828: negros satirizando os brancos |
Foi, porém com o declínio dos bailes de
máscaras realizadas em clubes, a partir da virada do século XX, que o
carnaval toma ares de festa popular de forma horizontal. O entrudo, ainda que
em plena obediência ao calendário litúrgico católico, acabou criminalizado
tanto pela igreja quanto pelo governo, que queria, por sua vez, se afastar
ainda mais de qualquer tradição ligada à monarquia. Tem início então um
processo de nacionalização do carnaval, que tem seu ponto alto a partir da
Revolução de 30 liderada por Vargas, que adota o carnaval como festa popular
genuinamente brasileira. A principal parceria para que isso fosse possível era
a utilização do rádio como mecanismo de propaganda. A partir de então o
carnaval passa a ter um caráter popular massificado e que, de uma forma muito
interessante, mantém algumas características históricas, como é possível notar
a partir da letra de Zé Ketti e Pereira Matos:
Tanto riso,
Oh! quanta alegria,
Mais de mil palhaços no salão
Arlequim está chorando
Pelo amor da Colombina
No meio da multidão!
Foi bom te ver outra vez
Tá fazendo um ano,
Foi no carnaval que passou,
Eu sou aquele Pierrot,
Que te abraçou,
E te beijou, meu amor,
Na mesma máscara negra
Que esconde teu rosto
Eu quero matar a saudade.
Vou beijar-te agora,
Não me leve a mal,
Hoje é carnaval!
A máscara e a crítica política
Uma peculiaridade do carnaval, seja em
que tempo se dê ao longo de sua história, é a possibilidade da crítica social e
política, sobretudo possibilitando algum tipo de expressão às camadas menos
favorecidas da sociedade, em relação a sua percepção do mundo a sua volta. E
essa expressão pode ser considerada uma forma de liberdade para a grande massa,
que já se deu conta de que o carnaval é o momento no qual a criatividade
e sarcasmo podem dar vazão à sua indignação ou estranheza quanto a diversas situações
que interferem em seu dia-a-dia. Bom exemplo disso é o sucesso que a Fábrica
Condal adquiriu desde sua inauguração em 1958.
Valles, em sua retomada na Abertura. Fonte: O Globo |
Na ocasião, o artista plástico
e ex-professor de escultura da Universidade de Barcelona, Armando Valles, que se
instalou no Brasil em 1956, afirmou em entrevista ao Jornal O Globo em 1970,
que as fantasias eram bastante elaboradas, mas que as máscaras eram grotescas,
ainda que buscassem representar uma ideia. Valle passou a
produzir máscaras com material sintético em larga escala, para distribuição em
lojas de artigos para o carnaval, o que se tornou um estrondoso sucesso. Atendendo a uma demanda crescente, em 1961 o artista passou elaborar também máscaras de
políticos, interrompendo a produção desse tipo específico em 1964 com o início
da Ditadura, voltando a retratar figuras da política em 1995, a partir do
processo de Abertura Política, quando Tancredo se tornou uma das personagens
mais procuradas em suas obras. Valle faleceu em 2007, com a fábrica ainda se
mantendo em atividade por mais dez anos, com a adesão em 2013 do artista
plástico Gabriel Barros. No entanto a fábrica, que
funcionava no bairro da Covanca em São Gonçalo-RJ, sob a direção da esposa e do
filho de Armando Valle, encerrou suas atividades em 2019, prestes a completar
61 anos de atividades ininterruptas. Gabriel alegou que preferiu se dedicar à
sua própria fábrica de máscaras em Duque de Caxias.
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Referências:
(*) AV
BARROSO. Do Culto Sagrado ao Coro do Carnaval: A origem das
representações teatrais no ocidente, suas influências na festa da carne e a
representatividade em Leopoldina, MG. Disponível em: https://theatroalencar.wordpress.com/tag/artigo-cientifico/;
COSTA, Felisberto Sabino. A Máscara e a Formação do Ator. Revista
Móin-Móin, Jaraguá do Sul, SCAR/UDESC, ano 1, 2005;
Fechamento da fábrica de máscaras em São Gonçalo:
https://www.osaogoncalo.com.br/geral/56643/fabrica-de-mascaras-em-sg-fecha-depois-de-61-anos
https://www.osaogoncalo.com.br/geral/56643/fabrica-de-mascaras-em-sg-fecha-depois-de-61-anos
Perny, Mônica Menezes. As máscaras de carnaval no cenário carioca : uma
contribuição à memória social / Mônica Menezes Perny. — 2015
O Entrudo, primórdios do carnaval no Brasil:
ZANATTA, M. S. Nas Teias da Identidade: Contribuições para a Discussão
do Conceito de Identidade na Teoria Sociológica. PERSPECTIVA, Erechim. v.35,
n.132, p.41-54, dezembro/2011;
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