quarta-feira, 23 de março de 2022

MÚSICA RELIGIOSA NA MPB, É PRA TER?

 



Não precisamos necessariamente ser profundos conhecedores de História da nossa MPB pra compreender que o cancioneiro popular se altera de acordo com as mudanças da nossa sociedade. As mentalidades inclusive, mudam aos poucos e com sutilizas que dificilmente percebemos, senão com distanciamento temporal. Se olharmos para a chamada música sertaneja por exemplo, veremos que há um abismo na comparação entre Luiz Gonzaga e Michel Teló por exemplo. Mas, se voltarmos nossa atenção para duplas como Tonico e Tinoco e João Mineiro e Marciano, percebemos um gradual distanciamento em relação à chamada Música Caipira, o que se percebe tanto em relação as figuras de linguagem quanto nas cores das roupas ou se a viola é substituída por uma banda ao fundo. Outra sutileza que notamos, inclusive referente ao tema central abordado aqui, é quanto essa mesma música, tida como sertaneja, abre mão da exclusiva relação com o catolicismo. Esse sim, há tempos, transversal à profissão de fé cristã, seja no sertão agreste ou na vastidão de ricas terras da Região Norte do Brasil. Porém, com o vertiginoso crescimento do mercado gospel, as músicas saltam os muros das igrejas e passam a embalar a noite de bares e salas de espetáculo. O que é importante porém observar de inicio é que existe uma distinção entre o que é voltado especificamente a mumentos litúrgicos e o queserve de enlevo espiritual, diferença que se aplica também ao mecanismo de sensibilização metafísica mais usual em celebrações e rituais diversos, que é a música.


Assim como no exemplo anterior em relação às regiões que chamamos de “Interior” em comparação com grandes metrópoles, invariavelmente é a igreja ou paróquia local que acolhe ou promove comemorações municipais e, sobretudo, as festas de padroeiro de cada cidade. Logicamente, as bandas e cantores locais vêem a igreja tanto como espaço de geração de renda como também de visibilidade à sua produção musical. Não é de se estranhar que compositores locais se dediquem a compor canções de cunho religioso, considerando inclusive que muitos desses passaram boa parte ou até maioria de sua infância e juventude nas diversas missas. Quando cito tais artistas estou discutindo exatamente a inserção dessas figuras no imaginário local, no qual fé e cotidiano não se descolam. Assim, para cada local ou região, a música religiosa é na verdade uma profissão de fé, como algo que une a todos em um momento festivo ou de lazer onde, contudo, não necessariamente os valores éticos e morais da comunidade religiosa são cobrados.

O professor da USP Eduardo Vicente vai além em seu trabalho “Música e Fé: A cena religiosa no mercado fonográfico brasileiro”, onde fala de uma música comum a católicos e protestantes, que pretende se dedicar à difusão de “mensagens positivas” e não necessariamente voltada ao momento de culto ou celebração religiosa. O autor mostra em sua obra que, a partir dos anos 90, se inicia uma gradual fusão entre música de cunho religioso e o mercado fonográfico. O que vimos naquela década é que houve uma verdadeira corrida das grandes gravadoras em direção ao público que queria a música, mas não necessariamente a igreja. 

Tuda música do povo pode ser MPB?

A proposta aqui é fazer uma breve abordagem relacionada ao que vemos hoje, no que se refere a inserção de músicas religiosas no contexto da MPB, deixando claro que entendo como inevitável que isso ocorra, se considerarmos que expressões de fé nunca deixaram de fazer parte da sociedade de alguma forma, como o tradicional "vá com Deus". No entanto, sabemos que não é apenas o conjunto de práticas culturais contidas na  mentalidade da sociedade que altera espontaneamente o repertório em nossos apps de streaming ou o que ouvimos em nossas rádios preferidas. Na prática é exatamente a característica comercial dos canais de entretenimento e de lazer  que determina o tipo de música que ouvimos. E como a partir disso algumas expressões de fé têm sido efetivamente encaradas como produto, é inevitável que nossa música popular não esteja impregnadas de linguagens dessa ou aquela religião preponderante em nosso tempo presente.

É importante ressaltar também que a MPB tem sofrido mudanças ao longo desses seus cinquenta e poucos anos, desde que foi definida como gênero musical. Uma de suas principais características é exatamente esse turbilhão de informações no qual está envolvida, que é o conjunto de influências estéticas às quais somos submetidos durante todo tempo. São interferências absorvidas ao longo de décadas, naturalmente surgidas a partir das diversas interações culturais internas ou externas ao nosso vasto teritório naional. Mesmo assim, para compreender os fenômenos que naturalizam a escuta de cantos de fé no cancioneiro popular, algumas características históricas na concepção de nossa música precisam ser observadas, se considerarmos como importante a necessidade da manutenção de aspectos bem peculiares no ideário daquilo que um dia foi definido como MPB.

Para entendermos sobre quais peculiaridades estamos falando, é importante observarmos o que ocorreu com a Bossa Nova por exemplo, gênero musical que inicialmente se propõe a colocar o instrumento no mesmo patamar de protagonismo que a voz do intérprete, dinâmica que ocorre a partir de João Gilberto, tido historicamente como um dos criadores dessa nova forma de tocar e cantar. Desde a proposta de uma nova cara para o samba por parte da dita "segunda geração da Bossa Nova", passando pelo flerte do jazz com essa pegada brasileira, o que vemos é algo distinto da proposta inicial do músico baiano citado, que não buscava  nada além de um jeito ritmica e harmonicamente rebuscado de tocar o violão, sem o apego à necessidade do clássico vozeirão no canto popular. 

A proposta de uma MPB identitária enquanto gênero musical tem como elemento fundamental a preocupação de universitários no final dos anos sessenta, em resguardar aspectos de identificação de nossa música com nossas matrizes históricas e culturais, o que não contribuiu para que a própria Bossa Nova, como citamos acima, sofresse mutações. Ocorre que mudanças estéticas, sejam elas impostas ou propostas, sempre foram comuns nessa grande metrópole fluminense, que ja foi Capital tanto do Império como também da República, invariavelmente colocando as linguagens de origem popular em um patamar inferior. Ou seja, o "belo" tem desde sempre um vício de origem, que exclui as camadas populares e seu criacionismo espontâneo. Veja que o aclamado Vinicius de Moraes é um raro exemplo de compositor que assume publicamente seu desejo de criar um tipo de "manual do samba", de modo que o mesmo se adapte à nova ordem da estética musical urbana e metropolitana do séulo XX, como vemos em Samba da Benção:

"Mas pra fazer um samba com beleza
É preciso um bocado de tristeza
É preciso um bocado de tristeza
Senão, não se faz um samba não"

E não é só isso. Não satisfeito em detrminar forma, ele também define o perfil do sambista e seu estilo, ao escrever, segundo ele mesmo, "um bom samba":

"Fazer samba não é contar piada
E quem faz samba assim não é de nada
O bom samba é uma forma de oração"

É possível compreender Vinicius de Moraes e sua mentalidade. Ele foi uma pessoa que viveu o auge de sua juventude  ao som da chamada musica de "dor de cotovelo", daí o fato ouvirmos canções desse compositor, impregnadas do discurso comum a copositores de classe média como Antonio Maria e Dolores Duran que, se estivessem vivos hoje, disputariam mercado com Ana Carolina ou Isabela Taviane, com seus repertórios repleto de sofrências, ainda que o termo só se pejorativamente a estilos musicais menos intelectualizados.  Não por acaso, os ultimos anos da década de sessenta foram marcados pelo surgimento de algo mais dinâmico e participativo no que se refere a nossa música, o que não foi o caso da Bossa Nova, como ja foi dito aqui. Excluir o samba, a música caipira e o (verdadeiro) seranejo, de uma proposta de música de consumo popular que reflita a nossa cara, seria então um rotundo equívoco. Quem está um pouco mais atento ao que entra por nossos ouvidos involuntariamente, sabe que a música de consumo está desapegada de formulações teóricas ou protecionistas. De igual modo, o que "emana do povo", como diz a Constituição,  sempre dá lugar a tendências preponderantes em cada momento histórico, daí a preocupação daqueles universitários de 1969 em defender uma música que de fato seja popular e que reflita a realidade brasileira. Mesmo que à mercê das prateleiras do mercado, ainda é justificável que a música de massa reflita o gosto popular e suas crenças.

Música litúrgica ou religiosa

Conforme mencionei anteriormente, existe uma distinção entre o que é religioso e o que é litúrgico. Nessa jornada que levou cerca de trinta mil anos entre estar de pé e se ver como civilização, a humanidade sempre fez a ponte entre cotidiano, festa e fé, fazendo com que aquilo que entendemos como arte, se encarregasse de fazer a ponte que justifica o que fazemos no dia a dia, diante dos rituais e crenças que aprendemos respeitar em comunidade.  


Mas então, o que faz a distinção entre religião e liturgia? Segundo o dicionário Oxford, liturgia é “o conjunto dos elementos e práticas do culto religioso (missa, orações, cerimônias, sacramentos, objetos de culto etc.) instituídos por uma Igreja ou seita religiosa”. Ou seja, quando um elemento físico, ou gesto simbólico ocorre durante um ato coletivo em local ou ocasião predefinidos, pode-se dizer que tal expressão é litúrgica, pois ocorre em condições e momentos específicos, com a finalidade de reafirmar uma intenção ritualística. Por ouro lado, se entendermos que religião é, também segundo o mesmo dicionário citado, “postura intelectual e moral que resulta da crença na existência de um poder ou princípio superior, sobrenatural, do qual depende o destino do ser humano e ao qual se deve respeito e obediência”. Nesse caso, a religiosidade independe do momento de culto, no sentido que é possível ter uma postura particular ou pública, que demonstre respeito e devoção a um ser que está na esfera metafísica da percepção humana. Dessa firma é possível compreender o lugar que a fé ocupa na MPB, além ter na mente de forma clara o nível de confusão (voluntária ou não) que percebemos, quando ouvimos de um cantor de pagode em um show: “me ensina a ter santidade, quero amar somente a ti”. Considerando que o termo santidade tem a ver com “separação para o sagrado”, o que se torna complicado quando a necessidade não é a religação com Deus mas, gerar renda através da música.  


Já escrevi anteriormente, no texto que abordo a invenção do gospel no Brasil, que misturar música e religião é, em nossos dias, uma estratégia regida por alguns produtores ligados a tomada de poder político e ao capital financeiro. O sucesso dessa iniciativa é tão promissor que as ações de gente que lida com a produção artística em igrejas passaram a investir no mercado secular, intervindo inclusive nos rumos da nossa MPB. Quase trinta anos depois da criação da Rádio El Shaday, a mais popular e promissora entre as emissoras evangélicas, é possível ouvir a recém falecida compositora e intérprete Marilia Mendonça cantando na TV a canção adventista “Te Agradeço Meu Senhor”, enquanto cantoras como Pablo Vittar sequer constam na programação das principais rádios populares do país. Nesse caso, a estratégia de ocupação de um espaço privilegiado no cenário da música pop não passa apenas pela disputa de competência técnica ou de discurso, mas principalmente pela imposição de uma ética cristã enquanto modo de vida. Não é novidade então que cantores populares dedicam parte de seu repertório a uma pública profissão de fé. No entanto, é a partir de quando o gospel passar a se tornar um negócio rentável, que o movimento natural entre fé e música popular, passa a ter efeitos preocupantes, inserindo o canto religioso ao que conhecemos enquanto popular. 


Não por acaso, deixei por último a abordagem relacionada aos cantos populares que remetem a religiões de matriz africana e por motivos importantes. Desde 1998 quando o Padre Macelo Rossi lança seu primeiro CD, percebemos que a igreja católica entra na disputa por uma fatia no gospel brasileiro. Não seria ruim essa elevação de qualidade da música católica provocada pela disputa de mercado, se tal movimento midiático e capitalista não se aliasse ao Movimento de Renovação Carismática Católica. Esse movimento que chega oficialmente ao Brasil em 1970, com fortes inclinações pentecostais, inclusive resistindo ao uso de imagens de Santos. Não demorou muito para que essa parcela da igreja romana somasse fileiras com o radicalismo protestante e o enfrentamento a qualquer evidência de africanidade, ignorando a proximidade e influência cultural dos cultos afro junto a formação de nosso povo.


Se observarmos o que ocorre desde 1922, quando o cientista e professor Roquette Pinto faz a primeira transmissão de rádio no Brasil, muito antes da denominação e aceitação coletiva do que seja a MPB, veremos que sempre foi natural aos nossos ouvidos um canto a Orixá ou a santo católico nas rodas de samba e saraus. Ocorre que a chamada Era de Ouro do Rádio (entre os anos 30 e 50), vem consolidar a definição midiática do que chamamos de “gosto musical”, influenciando diretamente as mentes de milhões de famílias brasileiras. Era possível então ouvir nas rádios músicas religiosas como “Nem Ouro Nem Prata” do compositor Ruy Maurity, gravada em 1976: “Eu vi chover, eu vi relampear, mas mesmo assim o céu estava azul Samborê, Pemba, Folha de Jurema Oxóssi reina de norte a sul”. Vale acrescentar aqui que o compositor citado era branco, filho da primeira violinista a integrar a orquestra do Theatro Municipal do Rio. Ou seja, para as rádios comerciais dosanos 70 estava clara naquele momento a compreensão de que o cenário da música popular no Brasil era amplo, sem hegemonia de uma religião em particular, tendo seus micrifones abertos para a forma de fé que refletisse o mosaico da espiritualidade do povo, muito ligadas à ética daquele momento. Dois exzemplos de inegáveis fenômenos de mídia que partilhavam o mercado fonográfico nos anos 70 eram Roberto Carlos e Clara Nunes. Ambos conduziam suas carreiras aliando cantos seculares e religiosos em seus repertórios. Importante observar que não existia por parte de ambos naquele momento uma identificação de suas carreiras com uma camada social específica. Guardando aspectos de produção musical bem antenados com seu tempo, o repertório laico de cada um não superava em qualidade à parcela religiosa do que era cantado nos shows. Ou seja, para os fãs, o que era cantado era igualmente visto como “música boa”, daí o estrondoso e perene sucesso de ambos.  


O que procurei deixar claro aqui é que, salvo os aspectos relacionados à luta por hegemonia, é plenamente possível o convívio com uma MPB onde essa ou aquela música religiosa possa ter seu momento na programação das rádios. Ocorre que hoje as produtoras, cientes da necessidade de agradar ao público gospel, orienta seus artistas a ter ao menos uma música que seja, em seu repertorio. É claro que alguns compositores e intérpretes já consolidados bancam o nítido desgaste de justificar um canto a esse ou aquele orixá ou alguma outra entidade de matriz africana mas, sob pena de perder acesso a alguns espaços de visibilidade para sua obra. 

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário