“Espero que os vossos netos hão-de viver numa ilha
onde já não será necessário ir à escola como hoje [é] ir à missa”
Ivan Illich
Nobreza: educação tutelada (imagem, autor desconhecido) |
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As origens e o uso dessa proposta
Já houve tempos em que famílias brasileiras abastadas faziam de suas casas verdadeiros centros culturais. Os antigos barões do café por exemplo, realizavam saraus e grandes recepções, de modo a mostrar o nível “cultural” de suas filhas, que estudavam, com o auxílios de professores particulares, longas peças musicais ao piano ou recitavam sonetos, que demonstravam o elevado nível de conhecimento estético adquirido. De igual modo essas meninas estudavam etiqueta, Latim e caligrafia, visando aprimorar e direcionar sua inteligência, sem perder de vista o modo sóbrio e comedido delas requerido. O objetivo era elevar-lhes os dotes, a padrões aceitáveis às belas e comportadas damas da época. Para além disso tal postura possibilitava que fossem dignas de seu nível social e riqueza, com os quais deveriam se portar diante da sociedade e, logicamente, diante de seus futuros maridos. Para tanto, essas jovens contavam com uma tutoria específica em suas casas, não recorrendo assim à educação pública, quando essa existia à sua volta.
Nos EUA o histórico do modelo familiar de educação tem proximidade com princípios doutrinários das igrejas adventistas dos estado do Sul, se alastrando pelo país em uma curva acentuada nas últimas décadas. Estudos naquele país apontam para um crescimento de cerca de 1% na década de 90 para 3,8% em 2010, no número de famílias que adotam o homeschooling como modelo educacional. São aproximadamente dois milhões de crianças inseridas nesse modelo, o que leva muitos estados a rever periodicamente seu modelo de educação pública e privada, de modo a atender de forma legal esse público. O principal elemento motivador do modelo de educação domiciliar nos Estados Unidos surge entre os anos 60 e 70, quando Esquerda e Direita se acusam mutuamente de utilização ideológica da educação. Uma crítica feito por autores daquele país aponta para um enfrentamento voltado à uma disputa hegemônica, além de contribuir para uma educação capitalista.
Segundo estudos já feitos, no Brasil esse número gira em torno de 700 famílias, com duas condenações judiciais de “abandono intelectual”(1). O caso de maior repercussão é o do empresário mineiro Cleber Nunes, que optou por educar os dois filhos mais velhos em casa, acarretando um longo processo judicial. Em decorrência disso Cleber criou a Associação Nacional de Educação Domiciliar (ANED), entidade que visa propagar o ideário da educação domiciliar no Brasil. Outros movimentos sociais como a Aliança Nacional para Proteção à Liberdade de Instruir e Aprender (Anplia), se dedicam à difusão de um modelo que circula entre dois princípios. No primeiro os conteúdos e avaliações educacionais pelos pais, e no segundo, o conteúdo fica a cargo dos pais enquanto à escola cabe os processos avaliativos.
Muitas décadas à frente, corroborado pelo governo Bolsonaro, está de volta um debate que circunda aquele modelo de educação domiciliar no Brasil. A educação em casa retorna à pauta na sociedade, em um momento singular, onde as políticas públicas têm cedido lugar à convicções doutrinárias e fundamentalistas, desconsiderando um histórico de debates sociais, acadêmicos e legislativos sobre o tema, há pelo menos 25 anos. Tomando como base o estudo feito em 2002 por Emile Boudens intitulado “Ensino em casa no Brasil”, veremos que há nos dias de hoje um vazio teórico nas discussões sobre esse tema, desconsiderando fatos já ocorridos em nosso país, além de amplo debate ocorrido no Congresso Nacional, que refuta tanto a viabilidade quanto a relevância da implementação desse modelo no conjunto de ações de governo, no campo da Educação.
Meninas Malvadas: filme que discute o homeschooling nos EUA |
Em relação ao texto citado e suas ponderações frente aos atuais fatores e motivações, é possível ponderar também que, em primeiro lugar, o que vemos hoje é um conjunto de apelos doutrinários, sempre em depreciação à escola enquanto instituição. A visão do governo Bolsonaro deixa em aberto, entre outras contradições, se as atuais motivações dizem respeito à qualidade ou o conteúdo do que é ensinado. Cabe também ponderar a capacidade dos pais em oferecer uma educação básica de qualidade à seus filhos e a que tempo, considerando que a dedicação necessária ao ensino fatalmente redunda em retirada de um dos membros responsáveis, do mercado de trabalho. Paralelo a isso, cabe um questionamento quanto a quem é atribuída a responsabilidade legal pelo ensino formal, levando em conta que a LDB atribui ao Estado o dever de garantir a educação, facultando tal atribuição a instituições privadas de ensino, à quem também são atribuídas responsabilidades legais. Cabe também observar que nenhum dos dispositivos legais em vigor hoje, possibilita delegar à família o direito de arcar com a educação formal de seus filhos. Pelo contrário, a família é, na realidade, responsabilizada quanto à permanência ou não da criança na educação formal, segundo o parecer do citado estudo, encomendado pelo Congresso Nacional.
Damares, a família e a educação
Damares: auto-intitulada, registro na OAB, cassado (foto:Veja) |
Ainda que o tema tenha diretamente haver com políticas públicas de Educação, é a Ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos Damares Alves quem defende de forma acalorada a questão da implementação da educação domiciliar no Brasil. A ministra se autodeclara Mestre em Direito Constitucional e Direito de Família. Buscando justificar a origem de tais títulos, é na bíblia que Damares se apoia, referindo-se ao texto em Efésios 4:11, onde se lê que "Ele [Deus] designou alguns para apóstolos, outros para profetas, outros para evangelistas e outros para pastores e mestres". Cabe observar que Damares graduou em direito na Faculdades Integradas de São Carlos, instituição essa que foi descredenciada pelo MEC em 2011. Hoje Damares Alves está com seu registro na OAB cassado pela entidade(2).
Alegando que a educação domiciliar possibilita aos pais aplicar mais conteúdos que a escola, a ministra diz que a matéria será implementada via Medida Provisória, sob a alegação que a discussão levantada há tempos, ainda está em aberto, cabendo assim a retomada dessa discussão. Em matéria do dia 25 de janeiro desse ano, publicada no site G1, a ministra, alega que existe um número bastante grande de famílias que adotam o modelo de ensino domiciliar. Todavia, segundo André Vieira (2012), que abordou essa temática no TCC de sua graduação pela Universidade Federal de Brasília, existem aproximadamente 400 famílias que adotam o homeschooling como modelo. Esses dados foram, segundo o autor, levantados pela Associação Nacional de Educação Domiciliar (ANED), entidade que serve como base para traçar o perfil das famílias que educam seus filhos em casa.
Com um perfil muito parecido ao modelo norte-americano, o grupo de aproximadamente de 400 famílias brasileiras que adotam o modelo de educação domiciliar, basicamente é formada por brancos de classe média, protestantes, fundamentalmente com maridos provedores e mães dedicadas exclusivamente ao lar. Nesse sentido as motivações são as de proteção dos filhos em relação às práticas de uma sociedade tida como "mundana", com seus valores deturpados, em comparação com determinadas doutrinas protestantes. De acordo com as críticas da Ministra Damares Alves, ideias como a denominada “ideologia de gênero” e a abordagem de questões ligadas à sexualidade, o homeschooling no Brasil traça um estreito paralelo com o modelo adotado nos EUA, no que diz respeito ao ponto de vista da comunidade evangélica mais radical, em relação à educação escolar. Outra motivação que surge entre famílias dos EUA e que tem paralelo com o que é discutido entre nós brasileiros e que não é prioridade no conjunto de justificativas da camada protestante que adota o homeschooling, é a questão da qualidade do ensino. Em particular, no caso brasileiro, no que se refere à crianças especiais, que requerem uma especial atenção.
Alegando que a educação domiciliar possibilita aos pais aplicar mais conteúdos que a escola, a ministra diz que a matéria será implementada via Medida Provisória, sob a alegação que a discussão levantada há tempos, ainda está em aberto, cabendo assim a retomada dessa discussão. Em matéria do dia 25 de janeiro desse ano, publicada no site G1, a ministra, alega que existe um número bastante grande de famílias que adotam o modelo de ensino domiciliar. Todavia, segundo André Vieira (2012), que abordou essa temática no TCC de sua graduação pela Universidade Federal de Brasília, existem aproximadamente 400 famílias que adotam o homeschooling como modelo. Esses dados foram, segundo o autor, levantados pela Associação Nacional de Educação Domiciliar (ANED), entidade que serve como base para traçar o perfil das famílias que educam seus filhos em casa.
Com um perfil muito parecido ao modelo norte-americano, o grupo de aproximadamente de 400 famílias brasileiras que adotam o modelo de educação domiciliar, basicamente é formada por brancos de classe média, protestantes, fundamentalmente com maridos provedores e mães dedicadas exclusivamente ao lar. Nesse sentido as motivações são as de proteção dos filhos em relação às práticas de uma sociedade tida como "mundana", com seus valores deturpados, em comparação com determinadas doutrinas protestantes. De acordo com as críticas da Ministra Damares Alves, ideias como a denominada “ideologia de gênero” e a abordagem de questões ligadas à sexualidade, o homeschooling no Brasil traça um estreito paralelo com o modelo adotado nos EUA, no que diz respeito ao ponto de vista da comunidade evangélica mais radical, em relação à educação escolar. Outra motivação que surge entre famílias dos EUA e que tem paralelo com o que é discutido entre nós brasileiros e que não é prioridade no conjunto de justificativas da camada protestante que adota o homeschooling, é a questão da qualidade do ensino. Em particular, no caso brasileiro, no que se refere à crianças especiais, que requerem uma especial atenção.
Intromissão do Estado?
O teólogo e filósofo austríaco Ivan Illich, que defendia a ideia de “desescolarização da sociedade”, entendia que sim. Para ele a escola deveria ser acessada por quem deseja um conhecimento específico, devendo ser um espaço de livre acesso a que assim desejar. Há de fato casos em que a escola não oferece as condições ideais de aprendizado, como na Educação Rural unidocente, geralmente distante geograficamente dos alunos que, inclusive, dedicam longos períodos do ano, à lavoura. Do mesmo modo, o ensino à distância, acessado inclusive por estudantes defasados na relação idade/série, é a saída sobretudo para adultos, impedidos de acessar a escola no período adequado de suas vidas, por motivos diversos. Nesse caso há que se compreender a necessidade real de flexibilização desse espaço de concentração de saber, à pessoas que vivem realidades sociais distintas e que, de igual modo, fazem jus à uma educação que lhes contemple. Todavia, há um conjunto de argumentos que refutam a necessidade de que seja criado um sistema paralelo de ensino, com a justificativa de possibilitar uma espécie de libertação didática do estudante.
Por outro lado, a ideia de “intromissão” do Estado na educação desejada pelos pais a seus filhos fere, na verdade, uma legislação que vê a educação como um dever do Estado e um direito da criança/adolescente. No Brasil de hoje vemos como particularidade um elevado nível e influência fundamentalista, motivando a opção feita pelas famílias envolvidas no homeschooling. No relato de Vieira em relação a esse tema, podemos ver o seguinte:
se as famílias abastadas do século XIX buscavam imitar a nobreza e a realeza de França e Inglaterra, as atuais famílias de classe média que educam em casa inspiram-se, sobretudo, em casos norteamericanos. A maioria delas, estima-se, é cristã – à maneira do que acontece nos Estados Unidos – e as que adotam a modalidade há mais tempo (desde meados da década de 1990), conheceram-na, em geral, por meio de líderes religiosos evangélicos originados daquele país, em visita ao Brasil ou imigrados.
A atual investida desse governo na fragmentação do modelo constitucional de educação coincide com outro fenômeno, que não tem haver com o educacional mas, com o econômico. O fato é que a educação pública vem sofrendo constantes ataques de grupos tendenciosos, o que podemos atribuir ao investimento maciço da iniciativa privada em em educação, enquanto negócio, além de nossa tendência a aceitar essa visão de que, o que é público é, naturalmente, de baixa qualidade. Se considerarmos que o modelo de educação adotado no Brasil vive em constante estado de observação e revisão, o que ocorre por intermédio de mecanismos de controle técnico e social, entenderemos que há equívocos nas críticas que, em sua maioria, não têm base. Logo, o avanço de tais iniciativas sem embasamento técnico e/ou teórico, podem redundar em um direcionamento da educação pública à instituições consideradas "adequadas", além da possibilidade de maior flexibilização das relações de trabalho, em relação ao professor.
Muitos pontos de vista que corroboram a ideia de educação pública se baseiam no raciocínio que compara a realidade da educação domiciliar à da educação no campo que, em muitos casos, é unidocente, limitando assim a eficácia de um ensino devidamente aprofundado. Tal argumento ganha mais força quando analisados os casos de famílias com mais de um filho, sobretudo quando esses têm idades menos aproximadas, o que obriga os pais a um malabarismo didático ainda maior. É por esse motivo que o Estatuto da criança e do Adolescente (Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990), estabelece, nos capítulos 56 e 55 que os pais têm obrigação de matricular seus filhos na rede regular de ensino, “visando ao pleno desenvolvimento de sua pessoa, preparo para o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho”.
A educação deve então fazer parte do processo formativo da criança, que passa, evidentemente, pela família, mas também envolve o desenvolvimento e aprofundamento das relações sociais, apontando também à uma formação para o trabalho o mais abrangente possível, no que tange ao ser adulto em sociedade.
O que vemos então é a exacerbação do fundamentalismo no Brasil, a partir da tomada de poder de uma camada social que vê as estruturas democráticas como empecilho para seus fins. A aproximação do Brasil junto ao governo Norte-Americano e, em paralelo a isso, também à suas estruturas ideológicas, ainda que esse governo diga ser avesso à isso, acaba deixando bem claro que há um projeto de tomada poder em curso. Vemos hoje uma acentuação do desmonte do pacto democrático estabelecido pela Constituição de 1988, na qual o Estado é colocado à serviço do povo. Nossa Carta Magna, que vem sofrendo desmontes praticamente após o dia seguinte à sua promulgação, tem, no capítulo voltado à Educação, sofrido um dos ataques mais ferozes, o que causa risco à formação intelectual e cidadã de nosso povo. Defender a educação pública, diferente do que extremistas religiosos e economistas apoiadores da ideia de Estado Mínimo buscam, não é horizontalizar de forma pasteurizada o aprender e o ensinar mas, significa democratizar oportunizar, inclusive a partir da cultura que cada região demanda.
Referências:
- (1) VIEIRA, André de Holanda Padilha, “ESCOLA? NÃO, OBRIGADO”: Um retrato da homeschooling no Brasil, Brasilia, 2012 - disponível em: http://bdm.unb.br/handle/10483/3946
- (2) Biografia e entrevista de Damares Alves
https://pt.wikipedia.org/wiki/Damares_Alves
https://g1.globo.com/politica/blog/andreia-sadi/post/2019/01/25/damares-educacao-domiciliar-permite-a-pais-ensinar-mais-conteudo-e-gerenciar-aprendizado.ghtml
- Boudens, Emile. Ensino em Casa no Brasil. Câmara dos Deputados, 2002;
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