Ritmistas, carnaval carioca, 1965 (Correio da Manhã) |
“Todo
mundo te conhece ao longe
Pelo som
dos seus tamborins
E o rufar
do seu tambor”
Chico
Buarque
Uma das
grandes virtudes das várias expressões estéticas oriundas da base da sociedade
é sua franca aderência ao novo. Exatamente por isso o carnaval é uma grande e
buliçosa caixa de surpresas, capaz de produzir, sem preconceitos, espanto e
alegria à seus espectadores, equilibrando, através de uma ética própria, tanto
inovações tecnológicas e rítmicas quanto valores caros à mentalidade de uma
escola de samba. Nesse sentido, se existe no contexto de uma agremiação
carnavalesca um fator capaz de concentrar elementos que remontam nossa
ancestralidade estética, em comum acordo com a velocidade e sonoridade de
nossos tempos, esse fator fundamentalmente é a bateria. Ao longo do tempo, no
entanto, vemos que o processo evolutivo ao qual uma bateria de escola de samba
se submete, a levou a um nível de exigência próprio, onde a mítica “nota 10” é
hoje condição sine qua non.
Hipoteticamente,
se um grupo de amigos que curtem carnaval pensar na formação de um bloco de
embalo, mesmo que pelo simples e sublime desejo de celebrar a felicidade,
necessariamente a aquisição de instrumentos básicos para formação de uma
bateria, será a primeira demanda. Mesmo que, posteriormente, esse pseudo grupo
entenda a necessidade de definir o samba que vai embalar o cortejo e até mesmo
se o gênero musical adotado será a tradicional e divertida marchinha, há que se
pensar na condução rítmica do grupo. Ou seja, ainda assim a bateria continuará
sendo prioridade, por conta da necessidade de um olhar mais apurado quanto ao
tipo e qualidade dos instrumentos e pela necessidade de uma condução rítmica
que garanta o alegre percurso, definido por aqueles foliões imaginários.
Seguindo o
mesmo raciocínio, quando olhamos para o ensino formal de música, vemos que um
de seus pontos fundamentais é o entendimento do conceito de “andamento” ou
“pulsação”. O entendimento desse conceito musical torna-se fundamental,
tendo em vista que “a manutenção regular e a sustentação da cadência da
Bateria em consonância com o Samba-Enredo”, conforme reza o regulamento estabelecido
pela Liga Independente das Escolas de Samba-LIESA, é o primeiro dos três
fatores dignos de atenção dos jurados. Essa “regularidade” se define pela
velocidade continua a ser aplicada na peça musical e, o que há de comum às duas
definições é exatamente a firmeza e continuidade necessárias à execução da peça
musical, sem as quais, como no jargão do carnaval, a bateria fatalmente vai
“atravessar” o samba. Já o ritmo, consiste em definir o “desenho” dos sons que
serão articulados em uma determinada velocidade. Nesse sentido, deveria ser
fundamental manter um padrão rítmico, de igual modo constante e estável.
Exatamente por isso o mestre de bateria, munidos de sua liberdade estética, se
esmera em desafiar esse tipo de ordem natural, imposta pela ortodoxia musical
acadêmica.
Bateria do Império Serrano, Mestre Calisto -1957 apenas surdo de marcação para número reduzido de componentes |
Ao
observarmos a sonoridade das baterias das diversas agremiações no Rio de
Janeiro, pelo menos até os anos 60, não perceberemos muitas variações rítmicas
ou alterações de velocidade. No entanto, já é possível perceber que instrumentos
não convencionais são gradualmente inseridos, como os pratos e a frigideira,
implantados pelo percussionista Calixto dos Anjos, do Império Serrano que,
segundo Nei Lopes, já se ouve na avenida em meados dos anos 50. Por ter
caráter de solista, instrumentos como esses são postados à frente do conjunto,
deixando mais ao centro os instrumentos responsáveis pela constância do
andamento, como a caixa e o repinique. O mesmo se aplica aos surdos,
responsáveis pela regularidade da pulsação durante os desfiles. O surdo de
terceira, instrumento menos grave que o de “marcação” (de segunda) e o
“resposta” (de primeira), já é notado nos anos 70, pelo menos em são paulo, no
GRES Nenê de Vila Matilde, agremiação fundada nos anos 50 em São Paulo. A
finalidade desse terceiro som grave é exatamente a de possibilitar a
“bossa”, na necessidade da marcação dos tempos 1-2, fundamentais para a marcha
regular dos componentes sem, contudo, comprometer o segundo item em julgamento,
que é “a perfeita conjugação dos sons emitidos pelos vários instrumentos”.
José Pereira da Silva, o lendário Mestre André |
Foi no
desfile de 1959 que a Mocidade Independente de Padre Miguel, até então uma
novata no carnaval carioca, trouxe uma inovação. Sob o comando de Mestre André,
a escola da Zona Oeste do Rio de Janeiro faz um breque na bateria,
mantendo apenas as caixas de guerra como referência para a pulsação. Aquela
intervenção radical no acompanhamento do desfile tornou-se um divisor de águas.
No terceiro item fundamental em julgamento está “a criatividade e a
versatilidade da Bateria”, dando ao mestre a mesma importância dada aos grandes
regentes eruditos. Ou seja, a competente interpretação criativa sobre uma base
rítmica já definida é capaz de garantir o ponto alto do julgamento desse
primeiro quesito em julgamento, com a nota 10. As inivações na Mocidade não pararam por aí. A partir dos anos 2000 se consolidou outra inovação com o uso da frigideira como instrumento solo na bateria, com divisão rítmica e técnica muito parecida com o tamborim, no que se refere à forma de tocar. Cabe observar que por conta do cabo da frigideira, aparentemente a performance torna-se mais confortável, vide o exemplo no link.
Mestre Jorjão: fez historia com sua "Bateria Funk" |
Na esteira
de inovação e sucesso de Mestre André vem também Mestre Jorjão, que incorpora a
batida do Funk carioca, ampliando o sentido do termo “paradinha”. Agora, essa
denominação diz respeito às alterações que alteram o ritmo contínuo da bateria
durante o percurso. Tal inovação de Mestre Jorjão mostrou-se fundamental para
que a Unidos do Viradouro conquistasse seu único campeonato no grupo de elite
das escolas de samba do Rio de Janeiro em 1997.
Esse
imenso coração pulsante que, por exigência regulamentar, deve reunir
minimamente 150 componentes, apenas reflete de forma fidedigna o imaginário
cultural de uma comunidade, se tiver em si a superação como meta. Considerando
que o carnaval não se restringe, logicamente, ao momento dos desfiles, devemos
estar atentos aos novos sinais, de modo que pequenos detalhes, capazes de fazer
história, não passem despercebidos. É tomarmos o passado como referência do que
somos, sem medo de acompanhar de forma coerente a sociedade em que vivemos, com
nossos sons e a velocidade do mundo moderno. Nesse sentido, a bateria torna-se
um reflexo de nosso tempo, deixando às gerações futuras um fiel retrato do
processo evolutivo pelo qual passam as batidas de cada coração e a mente fértil
de cada carioca.
Diretor de bateria: inovação necessária
Se considerarmos
que uma bateria do Grupo Especial do Rio
de Janeiro pode ser maior que uma agremiação nos anos 70, veremos a dificuldade
que existe em gerir um grupo tão grande e diverso de pessoas e instrumentos
sonoros. É exatamente como gestor que alguns novos mestres de bateria encaram
sua função, como é o caso de Ricardinho da Tuiuti, que encara com
responsabilidade seu papel de líder entre figuras fundamentais para o sucesso
de sua bateria:
“Vários diretores, inclusive, já são mestres de bateria em
outras escolas. Então, o trabalho que a gente faz aqui acaba servindo pra eles
também, onde aprendem as coisas num lugar maior. Onde a fogueira de vaidades é
maior. O importante é dar todo o suporte e toda a valorização pra que cada um
consiga tirar proveito e aprenda coisas pra aplicar nos seus trabalhos. Até
mesmo me observando, que sou um pouco mais velho, em questão de liderança, de
gestão. Sempre que possível estou presente e procurando prestigiar. No desfile
eu estou lá pra dar aquela orientada. Eles sentem mais segurança por estar com
uma pessoa mais experiente do lado.”
A função
do diretor de bateria é hoje inteiramente operacional, no sentido de transferir
a cada componente o sentido de unidade, necessário ao conjunto , em uma bateria
nos moldes de uma agremiação que disputa seu lugar entre as grandes. Cabe
observar também que é exatamente essa partilha de liderança o leva qualidade às baterias de agremiações nos
grupos de acesso, no sentido que muitos dos diretores coordenadores de naipe (grupos
de instrumentos) são mestres em escolas que não pertencem ao grupo especial,
elevando assim a qualidade e o nível técnico dessas aterias.
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Referências:
As
paradinhas: http://www2.sidneyrezende.com/noticia/113801/?p=1
Dicionário
Cravo Albin, disponível em: http://dicionariompb.com.br/
LIESA,
Manual do Julgador. LIESA, carnaval / 2017;
LOPES,
Nei. Dicionário da História Social do Samba, Companhia das Letras, 2015
______, Regulamento
Específico dos Desfiles das Escolas de samba do Grupo Especial da LIESA,
Carnaval / 2018
Mestrinel,
Francisco de Assis Santana. A Batucada
da Nenê de Vila Matilde: formação e transformação de uma bateria de escola de
samba paulistana. / Francisco de Assis Santana Mestrinel. – Campinas,
SP: [s.n.], 2009 .
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