sexta-feira, 2 de agosto de 2019

INOVAÇÃO: LIBERDADE, CRIATIVIDADE OU NECESSIDADE DE UM MESTRE DE BATERIA?


Ritmistas, carnaval carioca, 1965 (Correio da Manhã)
“Todo mundo te conhece ao longe
Pelo som dos seus tamborins
E o rufar do seu tambor”
Chico Buarque

Uma das grandes virtudes das várias expressões estéticas oriundas da base da sociedade é sua franca aderência ao novo. Exatamente por isso o carnaval é uma grande e buliçosa caixa de surpresas, capaz de produzir, sem preconceitos, espanto e alegria à seus espectadores, equilibrando, através de uma ética própria, tanto inovações tecnológicas e rítmicas quanto valores caros à mentalidade de uma escola de samba. Nesse sentido, se existe no contexto de uma agremiação carnavalesca um fator capaz de concentrar elementos que remontam nossa ancestralidade estética, em comum acordo com a velocidade e sonoridade de nossos tempos, esse fator fundamentalmente é a bateria. Ao longo do tempo, no entanto, vemos que o processo evolutivo ao qual uma bateria de escola de samba se submete, a levou a um nível de exigência próprio, onde a mítica “nota 10” é hoje condição sine qua non.

Hipoteticamente, se um grupo de amigos que curtem carnaval pensar na formação de um bloco de embalo, mesmo que pelo simples e sublime desejo de celebrar a felicidade, necessariamente a aquisição de instrumentos básicos para formação de uma bateria, será a primeira demanda. Mesmo que, posteriormente, esse pseudo grupo entenda a necessidade de definir o samba que vai embalar o cortejo e até mesmo se o gênero musical adotado será a tradicional e divertida marchinha, há que se pensar na condução rítmica do grupo. Ou seja, ainda assim a bateria continuará sendo prioridade, por conta da necessidade de um olhar mais apurado quanto ao tipo e qualidade dos instrumentos e pela necessidade de uma condução rítmica que garanta o alegre percurso, definido por aqueles foliões imaginários.

Seguindo o mesmo raciocínio, quando olhamos para o ensino formal de música, vemos que um de seus pontos fundamentais é o entendimento do conceito de “andamento” ou “pulsação”. O entendimento desse  conceito musical torna-se fundamental, tendo em vista que “a manutenção regular e a sustentação da cadência da Bateria em consonância com o Samba-Enredo”, conforme reza o regulamento estabelecido pela Liga Independente das Escolas de Samba-LIESA, é o primeiro dos três fatores dignos de atenção dos jurados. Essa “regularidade” se define pela velocidade continua a ser aplicada na peça musical e, o que há de comum às duas definições é exatamente a firmeza e continuidade necessárias à execução da peça musical, sem as quais, como no jargão do carnaval, a bateria fatalmente vai “atravessar” o samba. Já o ritmo, consiste em definir o “desenho” dos sons que serão articulados em uma determinada velocidade. Nesse sentido, deveria ser fundamental manter um padrão rítmico, de igual modo constante e estável. Exatamente por isso o mestre de bateria, munidos de sua liberdade estética, se esmera em desafiar esse tipo de ordem natural, imposta pela ortodoxia musical acadêmica.


Bateria do Império Serrano, Mestre Calisto -1957
apenas surdo de marcação para número reduzido de componentes

Ao observarmos a sonoridade das baterias das diversas agremiações no Rio de Janeiro, pelo menos até os anos 60, não perceberemos muitas variações rítmicas ou alterações de velocidade. No entanto, já é possível perceber que instrumentos não convencionais são gradualmente inseridos, como os pratos e a frigideira, implantados pelo percussionista Calixto dos Anjos, do Império Serrano que, segundo Nei Lopes, já se ouve na avenida em meados dos anos 50.  Por ter caráter de solista, instrumentos como esses são postados à frente do conjunto, deixando mais ao centro os instrumentos responsáveis pela constância do andamento, como a caixa e o repinique. O mesmo se aplica aos surdos, responsáveis pela regularidade da pulsação durante os desfiles. O surdo de terceira, instrumento menos grave que o de “marcação” (de segunda) e o “resposta” (de primeira), já é notado nos anos 70, pelo menos em são paulo, no GRES Nenê de Vila Matilde, agremiação fundada nos anos 50 em São Paulo. A finalidade desse terceiro som  grave é exatamente a de possibilitar a “bossa”, na necessidade da marcação dos tempos 1-2, fundamentais para a marcha regular dos componentes sem, contudo, comprometer o segundo item em julgamento, que é “a perfeita conjugação dos sons emitidos pelos vários instrumentos”.

 Outro fator de mudança na performance das baterias de escola de samba é o aumento na pulsação, provocado pela delimitação de tempo destinado ao desfile no grupo especial, onde  uma agremiação chega a ter cinco mil componentes. Desse modo as batidas tornam-se mais simplificadas, de modo a facilitar a execução por parte do instrumentista durante o limite de setenta e cinco minutos de desfile. Ainda assim é possível ao mestre de bateria dar seu toque pessoal ao acompanhamento do cortejo, dinamizando ritmicamente o acompanhamento sem, no entanto, interferir na interpretação do samba enredo ou na evolução das diversas alas. O que não é uma novidade, mesmo antes das últimas alterações na delimitação no tempo de desfile e o elevado nível de criatividade aplicado à bateria. 

José Pereira da Silva, o lendário Mestre André
Foi no desfile de 1959 que a Mocidade Independente de Padre Miguel, até então uma novata no carnaval carioca, trouxe uma inovação. Sob o comando de Mestre André, a escola  da Zona Oeste do Rio de Janeiro faz um breque na bateria, mantendo apenas as caixas de guerra como referência para a pulsação. Aquela intervenção radical no acompanhamento do desfile tornou-se um divisor de águas. No terceiro item fundamental em julgamento está “a criatividade e a versatilidade da Bateria”, dando ao mestre a mesma importância dada aos grandes regentes eruditos. Ou seja, a competente interpretação criativa sobre uma base rítmica já definida é capaz de garantir o ponto alto do julgamento desse primeiro quesito em julgamento, com a nota 10. As inivações na Mocidade não pararam por aí. A partir dos anos 2000 se consolidou outra inovação com o uso da frigideira como instrumento solo na bateria, com divisão rítmica e técnica muito parecida com o tamborim, no que se refere à forma de tocar. Cabe observar que por conta do cabo da frigideira, aparentemente a performance torna-se mais confortável, vide o exemplo no link.

Mestre Jorjão: fez historia com sua "Bateria Funk"
Na esteira de inovação e sucesso de Mestre André vem também Mestre Jorjão, que incorpora a batida do Funk carioca, ampliando o sentido do termo “paradinha”. Agora, essa denominação diz respeito às alterações que alteram o ritmo contínuo da bateria durante o percurso. Tal inovação de Mestre Jorjão mostrou-se fundamental para que a Unidos do Viradouro conquistasse seu único campeonato no grupo de elite das escolas de samba do Rio de Janeiro em 1997. 

Esse imenso coração pulsante que, por exigência regulamentar, deve reunir minimamente 150 componentes, apenas reflete de forma fidedigna o imaginário cultural de uma comunidade, se tiver em si a superação como meta. Considerando que o carnaval não se restringe, logicamente, ao momento dos desfiles, devemos estar atentos aos novos sinais, de modo que pequenos detalhes, capazes de fazer história, não passem despercebidos. É tomarmos o passado como referência do que somos, sem medo de acompanhar de forma coerente a sociedade em que vivemos, com nossos sons e a velocidade do mundo moderno. Nesse sentido, a bateria torna-se um reflexo de nosso tempo, deixando às gerações futuras um fiel retrato do processo evolutivo pelo qual passam as batidas de cada coração e a mente fértil de cada carioca. 

Diretor de bateria: inovação necessária

Se considerarmos que uma bateria do Grupo  Especial do Rio de Janeiro pode ser maior que uma agremiação nos anos 70, veremos a dificuldade que existe em gerir um grupo tão grande e diverso de pessoas e instrumentos sonoros. É exatamente como gestor que alguns novos mestres de bateria encaram sua função, como é o caso de Ricardinho da Tuiuti, que encara com responsabilidade seu papel de líder entre figuras fundamentais para o sucesso de sua bateria:


“Vários diretores, inclusive, já são mestres de bateria em outras escolas. Então, o trabalho que a gente faz aqui acaba servindo pra eles também, onde aprendem as coisas num lugar maior. Onde a fogueira de vaidades é maior. O importante é dar todo o suporte e toda a valorização pra que cada um consiga tirar proveito e aprenda coisas pra aplicar nos seus trabalhos. Até mesmo me observando, que sou um pouco mais velho, em questão de liderança, de gestão. Sempre que possível estou presente e procurando prestigiar. No desfile eu estou lá pra dar aquela orientada. Eles sentem mais segurança por estar com uma pessoa mais experiente do lado.”

A função do diretor de bateria é hoje inteiramente operacional, no sentido de transferir a cada componente o sentido de unidade, necessário ao conjunto , em uma bateria nos moldes de uma agremiação que disputa seu lugar entre as grandes. Cabe observar também que é exatamente essa partilha de liderança o leva  qualidade às baterias de agremiações nos grupos de acesso, no sentido que muitos dos diretores coordenadores de naipe (grupos de instrumentos) são mestres em escolas que não pertencem ao grupo especial, elevando assim a qualidade e o nível técnico dessas aterias.
----

Referências:
As paradinhas: http://www2.sidneyrezende.com/noticia/113801/?p=1

Dicionário Cravo Albin, disponível em: http://dicionariompb.com.br/

LIESA, Manual do Julgador. LIESA, carnaval / 2017;

LOPES, Nei. Dicionário da História Social do Samba, Companhia das Letras, 2015

______, Regulamento Específico dos Desfiles das Escolas de samba do Grupo Especial da LIESA, Carnaval / 2018

Mestrinel, Francisco de Assis Santana. A Batucada da Nenê de Vila Matilde: formação e transformação de uma bateria de escola de samba paulistana. / Francisco de Assis Santana Mestrinel. – Campinas, SP: [s.n.], 2009 .  



Nenhum comentário:

Postar um comentário