segunda-feira, 28 de janeiro de 2019

PALHAÇOS VERSEIROS: VELHOS E NOVOS POETAS DA FOLIA DE REIS

Tenho acompanhado há cerca de uma década as Folias de Reis do estado do Rio de Janeiro, em particular as bandeiras que fazem suas jornadas a partir da Baixada Fluminense. Dentre as ricas expressões contidas nessa vertente de nossa cultura popular temos o palhaço, que recebe esse nome por suas performances e sua vestimenta espalhafatosa, além das máscaras, que podem ser exibidas de formas diversas. Essa figura é cercada de mitos e simbolismos,  por isso mesmo exerce fascínio sobre os que se aproximam de suas práticas.




Partindo da tradição cristã, especificamente nos dois primeiros capítulos dos evangelhos de Mateus e Lucas, no Novo Testamento, de onde surgem as referências sobre as quais as folias criam seus símbolos e ritos, o palhaço de Folia de Reis representa a perseguição e afronta à tudo que o menino Jesus representa. Eles simbolizam a tropa enviada pelo governador romano Herodes, que buscou identificar o lugar onde, segundo a crença local, o Menino Jesus poderia ser encontrado. Vale lembrar que, segundo consta no no livro de Lucas, Herodes manda matar todos os meninos de dois anos para baixo, considerando o momento em que a informação chegara a ele, com atraso. Período esse que, segundo a cultura judaica e livre interpretação de Roma, deveria nascer o Messias que libertaria o povo do cativeiro e, por conseguinte, do jugo de César.

Presépio: principal referência imagética das Folias de Reis 

Por esse motivo temos a ausência do palhaço da Folia de Reis nos momentos de saudação, louvação e despedida da bandeira, quando em visita à casa de um devoto. Nesses momentos o palhaço se posta ao lado externo da casa, em alguns casos proferindo gracejos, enquanto o mestre ou contramestre discorre sua récita diante da bandeira, no interior da residência.

Pela ordem no cortejo, Mestre e contramestre, bateria e, por último, os palhaços
Ao fim da primeira parte, quando a bandeira é recebida pela casa do devoto e feitas a cerimônia devida, vemos então a apresentação dos palhaços da folia. Se por um lado o mestre traz através de sua reza a descrição de sua jornada e o ponto de vista de sua bandeira em relação ao cumprimento da promessa que diz respeito a chegada do Messias/menino, o palhaço, por outro lado, também justifica sua presença em versos. Nesse momento ele também se apresenta, contando em seu nome e também sua versão em relação à folia e a representação divina do Messias, sempre de forma respeitosa.

Geralmente se inicia a prosa do palhaço com um agradecimentos pela a atenção do público e saudação aos presentes. Em seguida, um agradecimento se volta ao devoto que os recebe em casa. Volta e meia esse devoto é citado nos versos, como se suas poesias refletissem um diálogo com um amigo.

Trouxe pro povo presente
Pra quem gosta de assistir
Eu vou entregar agora
Se você me “permitir”, (fulano)
Eu vim pra homenagear
O público que nos acolhe
Essa gente que incentiva
a brincar no som do fole
a poesia é uma arte
que, pra aprender, não é mole
é um dom que vem de berço
não é a gente que escolhe
(...)
Palhaço Patrício Rasteirinha
As folias têm suas bandeiras resguardadas por famílias que mantém suas jornadas durante muitas décadas. Essas famílias, por sua vez, são em sua maioria compostas de pessoas de baixa renda e seu legado é passado às gerações posteriores de forma oral. É bem possível que o esforço intelectual e dedicação desses foliões em preservar um patrimônio caro aos seus, sejam o principal elemento motivador de tamanho domínio dos elementos dessas tradições e tão aguçada criatividade, por parte dos palhaços das folias, sobretudo entre os mais jovens.


Segundo Darcy Ribeiro (1995) essa forma não acadêmica de transmissão de saberes, com sua flexibilidade e criatividade, tem se encarregado de manter valores caros ao grupo e também adaptar-se à realidade de cada momento, em cada grupo. Exatamente por isso o discurso do palhaço é livre. Porém, guarda valores tradicionais caros ao universo da Folia de Reis, o que é acentuado através dos constantes encontros entre jornadas de vários municípios do estado fluminense. A partir desses espaços de intercâmbio surge o confronto de ideias e valores, que se reflete nos versos dos palhaços, gerando a riqueza poética que vemos durante a chula.
Durante alguns desses encontros surgem desafios entre os palhaços, que se refletem nos versos. Em alguns casos esses versos servem para demonstrar descontentamento com posturas ou abordagens públicas as quais determinado palhaço entende como inconveniente ou inoportuna. A esse tipo de verso de resposta direcionada a determinado “desafeto” os palhaços costumam chamar de “martelo”.

Eu não gosto de confusão
Vocês gostam de brigar
Eu não sou Anderson Silva
Pra poder te amansar
Oh, Marcelinho Bed Boy
Sua língua vou lavar
Eu gosto de admirar
Poetinha estrelinha
Tem gente me perguntando
De onde sai tanta letrinha
Eu respondo no pé da língua
Isso tudo é coisa minha
Ontem foi o fofo falando
Imitando o Rasteirinha
Cês tem que ouvir Frajolinha
Pro chula ficar gostoso
(...)
Palhaço Frajola
Não vou mudar meu roteiro
Pois nada me descontrola
Tô cansado de escutar
Poetinha meia sola
Que vive aí dizendo
Que ainda pisa e me esfola
Mas pra vir me pisar (Fulano)
Tem que preparar a caixola
Não adianta fazer patota
Nem viver de corriola
Tem que estudar todo dia
Pra entrar na minha escola
(...)
Palhaço Rasteirinha


Palhaço Casca Grossa, versando martelo

Algumas folias, em consonância com a jornada dos reis do Oriente em cumprimento ao que consta do evangelho, seguem sua jornada anunciando o nascimento e o encontro dos peregrinos com o Messias menino, a todos os devotos. Nesse sentido, até mesmo religiões de matriz africana recebem a jornada dos Reis do Oriente. temos visto que hoje o acolhimento às jornadas não se restringe à instituições ou grupos religiosos tradicionalmente cristãos, do mesmo modo que há mestres foliões que se colocam abertos do acolhimento de grupos religiosos não cristãos, como vemos no exemplo da folia de D. Conceição: “onde minha avó é convidada, ela vai e não faz asserção. Ela vai e canta pros Três Reis e pra São Sebastião e salva [faz saudação] os santos da mesma forma como ela salva os santos na igreja”, diz Elaine, neta de D. Maria da Conceição, Mestra da Folia Nova Aurora do Oriente em Magé.

Mestre Aroldo de Magé: sua bandeira e seu terreiro
O menino Cauã Farias, de palhaço e com sua Guia, acompanhando a Folia da familia

O palhaço também reflete em seus versos o sincretismo religioso que existe entre sua expressão cultural de origem cristã e as religiões de matriz africana. O fato dos terreiros possuírem amplo espaço de acolhimento às folias convidadas contribui significativamente para a boa aceitação do sincretismo religioso que vemos nas folias. De igual modo os palhaços partilham sua fé na roda, como inspiração para seus versos. Orixás e entidades espirituais são citados, geralmente no início da chula, sobretudo nos momentos de sua saudação inicial.


Palhaço Pinguim, da Folia Manjedoura de Belém, saudando orixás e guias

O mesmo vemos em relação a folias que em sua jornadas utilizam cantos de doutrina cristã evangélica ou protestante. Há um grande número de foliões convertidos ao protestantismo que também optam por não abrir mão da jornada. No entanto, incorporam ao cotidiano de suas bandeiras alguns dos cantos litúrgicos de suas igrejas. Observamos que existe a busca pelo equilíbrio no uso ou adequação de tais cantos ao momento propício da jornada. Geralmente tais cantos são utilizados durante os cortejos, que na maioria dos casos duram o percurso de longas distâncias.



Canto da Guia dos Santos Reis em Vassouras

Em relação aos palhaços, há incorporação de louvação  a Deus, nos moldes da igreja protestante, sobretudo no momento de sua apresentação. No entanto, no que se refere às falas dos palhaços, não percebo alusão à figura do diabo ou “o inimigo”, como é tratado o “adversário de Deus” entre os evangélicos, sobretudo pentecostais. Conscientes de seu papel de antagonista nessa encenação de origem cristã, oferecer enfrentamento ao inimigo seria então um contrassenso em relação à própria existência do palhaço, no contexto da Folia de Reis.

Veja no link a apresentação do Palhaço Bed Boy e Sem Limite, em alusão
à Trindade divina, com uma abordagem típicamente protestante.

O palhaço nas jornadas tem sido uma importante porta de entrada de jovens junto às bandeiras. O protagonismo propiciado por seus personagens, o ambiente de disputas através de versos, as acrobacias e máscaras, têm se mostrado um atrativo muito interessante aos que estão de fora, além daqueles que crescem no ambiente familiar dos foliões. No que se refere às Folias de Reis enquanto expressão cultural, as jornadas vêm demonstrando que de fato cultura é um fator social em constante mutação, ainda que a estrutura de seus valores permaneçam e, inclusive, sejam calorosamente preservados sobretudo pelas famílias envolvidas. Tamanha é a riqueza dessa manifestação popular e cultural, que em todas as regiões de nosso estado fluminense vemos jornadas acontecendo. Nesse sentido, cabe reafirmar a importância de lutarmos por sua integridade enquanto retrato de nossa sociedade, que está disposta a zelar por valores caros a seus grupos, mas também demonstram e praticam o direito de adaptar linguagens e imagens, de modo que as identidades também sejam valorizadas na interpretação de seus valores.
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Referências:

- Fotos do acervo do Centro de Cultura Popular da Baixada Fluminense

- RIBEIRO, Darcy. OPovoBrasileiro AformaçãoeosentidodoBrasil. Companhiadas
Letras1995 SãoPaulo Segundaedição

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