Artistas, em contante expectativa quanto aos rumos das políticas culturais |
O Pacto Federativo é um conjunto de regras constitucionais que determina a divisão de responsabilidades entre a União, os estados e os municípios (CF Arts. 1;18).
Foram quatro anos de lutas constantes, resistindo a um governo que, declaradamente, se posicionou como inimigo da cultura e dos agentes culturais. Superado esse período de trevas nas políticas públicas de cultura e nas relações institucionais, vivemos o desafio de esticar as lonas e re-pavimentar caminhos, ainda sob a resistência de muitos gestores que apoiavam abertamente um modelo centralizador e avesso à participação popular, em discordância com nossa Constituição.
Para ilustrar o tema, é no mínimo interessante observar
o paralelo entre a Covid-19, que ainda mata
cerca de vinte brasileiros por dia, e o modelo anterior de gestão pública, que mantém seus
tentáculos nas prefeituras da Baixada Fluminense como vemos hoje. Ainda que o número
de mortos seja bem menor, e o diálogo com o governo federal esteja em franco
processo de retomada, ainda percebemos consequências pouco saudáveis daquele
momento surdez administrativa, como percebemos em relação à execução da
Lei Paulo Gustavo até o momento.
Como muitos de nós sabe, a Lei Aldir Blanc e a Lei Paulo
Gustavo são duas iniciativas legislativas voltadas ao apoio e ao fomento do
setor cultural brasileiro, que foi fortemente afetado pela pandemia de
Covid-19. Para termos uma visão mais clara sobre o que foi esse constante
vai e vem e seus impactos na relação entre os entes federativos e demais instâncias de Poder, traçamos aqui uma linha do tempo, demonstrando o duro processo de
efetivação de um apoio justo à classe artística, grupos tradicionais, técnicos,
produtores e demais agentes culturais por todo Brasil, com impacto direto em
nossa Região, bem como a resistência do governo anterior à sua execução:
Junho de 2020: A Lei Aldir Blanc (Lei n.º 14.017) é sancionada, prevendo o
repasse de R$ 3 bilhões a estados, municípios e Distrito Federal para medidas
de apoio e auxílio aos trabalhadores da cultura atingidos pela pandemia.
A lei é uma resposta da sociedade brasileira ao impacto da crise
sanitária no setor cultural e uma homenagem ao compositor e escritor Aldir
Blanc, que faleceu vítima do coronavírus.
Janeiro de 2021: A Lei Aldir Blanc é prorrogada por meio da Lei n.º
14.150, que amplia o prazo para utilização dos recursos e estende o auxílio
emergencial aos trabalhadores da cultura.
Julho de 2021: O então presidente
da República edita uma Medida Provisória (MP) que altera leis de apoio financeiro
ao setor cultural, incluindo a Aldir Blanc. A nova determinação autoriza o
Governo Federal a destinar os recursos, desde que respeitadas as
disponibilidades orçamentárias e financeiras. Porém,
protela os prazos para o repasse. A MP é vista
como uma tentativa de inviabilizar a execução da lei e de desrespeitar a
autonomia dos entes federativos na gestão dos recursos.
Agosto de
2021: O Supremo Tribunal Federal (STF) anula a MP e determina que os recursos
da Lei Aldir Blanc sejam repassados aos estados, municípios e Distrito Federal,
conforme previsto na legislação original. A decisão é comemorada
pela classe artística e pela sociedade civil, que se mobilizaram em defesa da
lei.
Julho de 2022: A Lei Paulo
Gustavo (Lei Complementar n.º 195) é aprovada, viabilizando o maior investimento
direto no setor cultural da história do Brasil. São R$ 3,862
bilhões para a execução de ações e projetos em todo o território nacional.
A lei é, também, um símbolo de resistência da classe artística e uma
homenagem a Paulo Gustavo, artista símbolo da categoria, vitimado pela Covid-19.
Agosto de 2022: O Executivo tenta impedir os repasses da Lei Paulo
Gustavo por meio do veto integral da lei, alegando inconstitucionalidade e
falta de previsão orçamentária. O veto é criticado pelo segmento artístico-cultural e pela sociedade
civil, que acusam o governo de negligenciar a cultura e de desrespeitar a
memória de Paulo Gustavo.
Setembro de
2022: O Congresso Nacional derruba o veto presidencial e promulga a Lei Paulo
Gustavo, garantindo a sua execução. A decisão é celebrada pela classe artística e pela sociedade civil, que
se engajaram na campanha #DerrubaVetoPauloGustavo nas redes sociais.
Março de 2023: A recriação do
Ministério da Cultura abre o caminho para a plena execução da Lei Paulo
Gustavo. Após um intenso processo de escuta, a pasta edita o decreto regulamentar
da lei, permitindo que estados, municípios e Distrito Federal pleiteiem a verba.
Novembro de 2023: Diversos estados e municípios lançam editais,
chamamentos públicos, prêmios e outras formas de seleção pública para destinar
os recursos da Lei Paulo Gustavo aos fazedores de cultura. A
proposta é que trabalhadores
da cultura tenham acesso aos valores por meio desses mecanismos, que contemplam
diversas áreas das artes, com respeito à diversidade e à democratização
cultural.
Ocorre que o Governo Federal e a
Secretária de estado de Cultura e Economia Criativa-SECEC, pelo bem do que
chamamos de Pacto Federativo, vêm buscando uma aproximação com os municípios, que
nem sempre aderem ao princípio constitucional de que a cultura é um bem
inalienável do povo brasileiro, como determina o Art. 215 de nossa Carta Magna.
A LPG prevê que estados e municípios deveriam realizar “oitivas”, de modo a receber
contribuições da sociedade civil na elaboração dos chamados Planos de ação que,
por sua vez, foram encaminhados ao MinC para apreciação. Pelo que foi apurado,
poucos planos de ação sofreram veto ou alguma proposta de alteração. O
município de Mesquita-RJ, por exemplo, teve seu Plano de Ação aprovado na íntegra,
mesmo após diversas alegações e observações feitas pela sociedade civil que, na
prática, não foi ouvida no período de oitivas.
No estado do Rio de Janeiro, por exemplo, 08 dos 92 municípios não realizaram conferências municipais e suas respectivas
oitivas para receber os recursos da LPG. São eles: Angra dos Reis, Araruama, Carapebus, Piraí, São José do Vale do Rio Preto, Saquarema e Sumidouro. As conferências municipais deveriam
ser realizadas até o dia 08 de outubro, conforme regulamentação da 5ª
Conferência Estadual de Cultura. Ainda assim, a SECEC definiu os Encontros
Setoriais de Cultura como mecanismo alternativo para eleição de Delegados à
Conferência estadual, de modo a possibilitar que agentes culturais não fossem
excluídos do encontro. Citando mais uma vez Mesquita, a gestão municipal da cultura agendou sua Conferência para o dia 21 de outubro e, portanto, fora do prazo definido pela
SECEC, teve sua agenda corroborada pelo MINC, inclusive com a presença de
representante do Ministério no conclave. A justificativa dada na ocasião pela
Secretária dos Comitês de Cultura do MINC, Roberta Martins, foi a de que “estamos
em um novo tempo de repactuação e que todos nós, sociedade civil e governos,
devemos olhar pra frente”.
Entendemos que, de fato, estamos
em um novo tempo de reconstruir pontes e repactuar políticas, de modo a retomar o respeita a princípios básicos como a descentralização de recursos financeiros a estados e municípios. Todavia, esses
novos ares devem ter como premissa a aproximação com a cadeia produtiva da
cultura que, de fato, é o público alvo das políticas públicas. Nós, agentes culturais, vemos com muita
preocupação a possibilidade de que o marco legal da cultura se torne volátil a
ponto de aproximar governos e perpetuar o distanciamento entre gestores e a
sociedade civil. Me vem à mente a ideia de Gramsci, quando afirma que o Estado
(brasileiro, no nosso caso), é composto de sociedade civil e sociedade
política, dando a entender que é letal à democracia que essas duas instâncias
sejam adversárias, sobretudo quando os poderes constituídos pactuam apoio mútuo e espaços de consenso.
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