Esse texto foi publicado inicialmente em 31 de março no site Vozes de Mesquita. Estou replicando aqui para registro no blog, de modo a amplificar o alcance dessa discussão que mostra a importancia da resistencia ao regime ditatorial brasileiro, que se deu entre 1964 e 1995, com o uso de arte e muito humor no conteúdo das informações e notícias para além dos canais de comunicação aliados ao golpe militar.
Se existem duas peculiaridades no que diz respeito a comunicação informal
para o povo em geral é a capacidade de proliferar notícias falsas e fazer piada
com coisa séria. Com câmeras fotográficas, aplicativos de edição de áudio e
vídeo e acesso gratuito a canais digitais, todo brasileiro portador de um
smatphone pode divulgar uma ideia à seu bel prazer com poucas consequências
negativas para si. O fato é que a proliferação de notícias falsas e essa pródiga
capacidade de fazer piada jocosa em relação a fatos políticos não é de agora.
Quem dá alguma atenção à nosso história recente consegue facilmente levantar
fatos capazes de reafirmar que nosso povo de fato é, acima de tudo, extremamente
criativo, o que não nos exime de cairmos nas próprias ciladas, no que se refere
à comunicação popular com matérias tendenciosas de caráter “chapa branca”, nome
dado a tudo que é de fonte oficial. Quando olhamos as sementes plantadas há mais
de meio século pelos EUA no período da Guerra Fria referente a informação,
veremos que fomos alvos fáceis para o que se tornou o estado de coisas que
culminou com o golpe civil/militar de 64.
Quem nunca ouviu a máxima “nos tempos
da ditadura isso não era assim” ? Quem então desdenhava ou achava graça desse
tipo afirmação viveu pra ver o nível de repressão a ideias de vanguarda e ataque
a direitos civis sob os quais vivemos hoje, quando temos mais de seis mil
militares em cargos civis, segundo o site RBA (Publicado 18/05/2021). A
propaganda feita durante duas décadas de ditadura foi tão eficiente que hoje,
mesmo com mais uma centena de denúncias formais no judiciário, há quem ainda
defenda o atual estado de coisas. E nos chamados “anos de chumbo”, assim como
hoje, não é apenas a propaganda militar que alavancou o movimento armado que
surgiu de dentro do Estado brasileiro. Não atoa, quem olha a história desse
período classifica hoje aquele levante como uma ditadura civil/militar,
considerando a atuante participação e coautoria da camada mais favorecida da
sociedade urbana e rural à época. São tantos paralelos em relação ao que temos
hoje, que entendi ser relevante levantar alguns pontos, muito peculiares hoje e
que têm lastro no que ocorreu naquele tenebroso período de silencio, conivência
e, felizmente, bastante resistência.
Os comunistas, sempre eles!
A Guerra Fria,
como sabemos, tem a ver com a corrida armamentista entre os EUA e o território
que compreendia a antiga União Soviética. Desconsiderando aqui nessa abordagem
as questões relacionada ao expansionismo territorial russo e estadunidense, além
da já conhecida busca por ampliação de mercado consumidor de seus produtos,
quero enfocar a eficiente estrutura de convencimento internacional aos
interesses dos nossos vizinhos americanos. Logo no início dos anos 50 o senador
estadunidense Joseph McCarthy iniciou uma verdadeira campanha anticomunista, a
tal ponto de levar parte da população às raias da paranoia. O político,
inicialmente por iniciativa própria, passa a incentivar o povo a perseguir os
comunistas ou pessoas com ideias que se afinassem com o ideário russo. Não
tardou para que tal ideia, conhecida posteriormente como Macartismo, se
convertesse a uma maior repressão a negros e seus movimentos de aceitação e
melhores condições de acesso à cidadania, por exemplo. O filme Boa Noite, Boa
Sorte, de 2005 retrata bem o que foi esse primeiro movimento de uma ópera de
terror psicológico no território norte-americano, que só teria paralelo com a
chamada Guerra ao Terror, promovida décadas depois, pelo presidente Jorge Bush.
O jornalista Joremir da Silva publicou em 01 de abril de 2019 no Jornal Correio
do Povo uma interessante matéria, na qual ele discorre sobre o ex-presidente
João Goulart e o processo que culminou com sua derrubada do poder. Taxado já em
1955 como comunista, Jango foi alvo do que chamaríamos hoje de fake News. O
jornalista inclusive mostra um trecho no qual o presidente John Kennedy envia
carta à Jango, como era apelidado, com uma posterior resposta ao presidente
norte-americano, o que ilustra bem os motivos que o levaram à ser deposto e
exilado:
John Kennedy, em carta de 22 de outubro de 1962, arriscou: “Quero convidar Vossa Excelência para que as suas autoridades militares possam conversar com os meus militares sobre a possibilidade de participação em alguma base apropriada com os Estados Unidos e outras forças do hemisfério em qualquer ação militar que se torne necessária pelo desenvolvimento da situação em Cuba”. Jango respondeu com altivez: “A defesa da autodeterminação dos povos, em sua máxima amplitude, tornou-se o ponto crucial da política externa do Brasil, não apenas por motivo de ordem jurídica, mas por nele vermos o requisito indispensável à preservação da independência e das condições próprias sob as quais se processa a evolução de cada povo”.
Não há indício algum de que Jango
tivesse inclinações ao bloco comunista. Ao contrário, ele, que era um liberal de
Direita, também entendia que seria ruim para o desenvolvimento nacional o
alinhamento com aliados da União Soviética, considerando seu ideário de avanço
econômico nos moldes ocidentais. Joremir Silva ainda completa em seu artigo:
Teria Jango respondido dessa maneira por nutrir simpatias pelo comunismo e por querer transformar o Brasil numa grande Cuba? Ele tratou de eliminar qualquer dúvida: “O Brasil é um país democrático, em que o povo e governo condenam e repelem o comunismo internacional, mas onde se fazem sentir ainda perigosas pressões reacionárias, que procuram sob o disfarce do anticomunismo defender posições sociais e privilégios econômicos, contrariando desse modo o próprio processo democrático de nossa evolução”. Os Estados Unidos da América veriam nessa manifestação de independência uma clara inclinação ao comunismo. Assim se fez a história.
O fato é que, ao discordar da proposta de alinhamento com os
EUA, em favor da defesa da soberania nacional de todo e qualquer país, Jango se
tornou alvo fácil para a sociedade política alinhada com a estratégia de
hegemonia estadunidense. Logo, não demorou para que a mídia da época e a parcela
mais abastada da sociedade o estigmatizasse como “o presidente que quer
instaurar o comunismo no Brasil”.
“Deus, pátria e família”, como antigamente
Algumas pessoas ainda hoje ficam abismadas pela forma como a igreja está
estreitamente alinhada com o Estado brasileiro ou ao menos com governos em
particular. Quando interesses se alinham, é comum ao redor do Globo que
religiões se aproximem de governos auto intitulados conservadores. O que se
torna um prato cheio para denominações religiosas que aspiram ascensão e
credibilidade junto as massas, como vemos em nosso país. Se observarmos atos
políticos fundamentalistas como o PL 4322/2019, que estabelece a bíblia como
Patrimônio imaterial brasileiro, entenderemos que a necessidade de aproximação
com as estruturas de poder tem na verdade tudo a ver com o projeto de
expansionismo religioso, que visa, na verdade, sobrepujar a histórica
proximidade com as religiões de matriz africana e estabelecer uma nova hegemonia
religiosa no Brasil. Digo nova em consideração à tradicional relação entre a
igreja católica romana e os três poderes da União, desde sempre, vide os
crucifixos tão comuns em repartições públicas ainda hoje. Não distante dessa
realidade, em 13 de março de 1964 Jango faz um ato público onde apresenta um
conjunto de propostas e medidas visando o desenvolvimento social e econômico do
Brasil. Tamanha foi a campanha contraria ao ato, que eclodiram várias
manifestações públicas, sobretudo nas capitais do Rio e de São Paulo,
congregando diversas instituições da sociedade civil em favor de ações capazes
de resguardar o país de uma ameaça possível comunista, segundo a fala dos
manifestantes. A chamada “Marcha da Família com Deus, pela Liberdade”, promovida
sobretudo por mulheres com anuência da igreja católica, foi crucial para
justificar a derrubada de João Goulart do poder e o efetivo golpe entre a noite
de 31 de março e a madrugada do dia 01 de abril.
A pegadinha do 01 de abril
Relatórios de militares não deixam dúvidas de que, sim. Em 31de março de 1964,
tropas da 4ª Região Militar e da 4ª Divisão de Infantaria, sob o comando do
General Olímpio Mourão Filho (sim, eu disse Mourão), já se encontravam em
prontidão as 7 da manhã em Juiz de Fora, Minas Gerais, no dia 31. Porém, ao meio
dia de 01 de abril Jango ainda se encontrava despachando no Rio, sob a guarda do
comando da 1ª Região Militar do Exército e o comando da 3ª Zonas Aérea da
Aeronáutica. Houve também no bairro da Cinelândia uma verdadeira batalha das
forças militares contra apoiadores de Jango, no fim do dia 01/04, quando
efetivamente Jango sai de Brasilia e se refugia no Rio Grande do Sul, já na
madrugada do dia 02/04. Ai sim, ratificado o golpe por parte do comando da Junta
Militar que tomou o poder.
Eles não tiveram sossego
Comentei no início que hoje
é muito mais fácil de se fazer um meme relacionado a alguma figura pública, por
conta da agilidade da internet e os apps à mão de adultos e crianças.
Aplicativos como o Telegram, atrás do que se escondem tantas fake News,
dificultam o rastreamento de mensagens que não condizem com a verdade em muitos
dos casos. Mas não é só de publicações negativas que é feita a mídia popular.
Basta uma gafe e, pronto! Mais uma imagem viralizando em pouquíssimo tempo em
canais como Youtube ou sendo passada à milhares de pessoas em segundos, através
do Watssap. Mas, acho importante imaginar a situação de jornalistas em pleno
período de excessão, não alinhados ao regime militar ou mesmo fazendo-lhe
oposição, todos com nomes e endereços de conhecimento público, produzindo
material facilmente rastreado e confiscado. São inúmeros os casos de jornalistas
desaparecidos, sobretudo a partir de 1968 quando foi publicado o Ato
Institucional nº5, exatamente no ano em que foi criado o lendário tabloide O
Pasquim.
Contando inicialmente com o cartunista Jaguar e os jornalistas Tarso de
Castro e Sergio Cabral (o de verdade), O Pasquim já inicia o ano de 1969
provocando a criação da Censura Prévia de publicações e shows, por conta da
entrevista feita a Leila Diniz, com ideias que inclusive já viraram letra de
música. Mesmo assim, com toda repressão e severo controle de suas publicações O
Pasquim se manteve firme e inspirador durante quase todo o período de ditadura,
com sua última publicação datada de fevereiro de 1991. Antes disso tal ato de
resistência jocosa ainda agregou outras feras, como Ziraldo, Millor Fernandes,
Rui Castro e Henfil. Esse último, imortalizado por suas charges e personagens
que ilustram publicações e até camisetas, até hoje. Essa forma criativa de
enfrentamento engraçado e criativo foi seguido pelo veículo mais em voga na
época. Nesse percurso surgiram programas de TV que não se furtavam a alfinetar
os militares e seus aliados, com O Planeta dos Homens de 1977 e Viva o Gordo,
com Jô Soares em 1981.
Muito já foi falado em relação a memória da resistência
nesse controvertido 31 de março, que em nada contribui de fato quando o assunto
é questionar se o golpe ocorreu ou não no 01 de abril. Basta lembrar que em 2016
passamos por uma manobra extremamente tendenciosa que depôs Dilma Roussef do
poder, com o uso de métodos semelhantes de depreciação da imagem de uma
presidência que segue na contramão da macroeconomia e da avareza. Importante
aqui é a relevância dos fatos e dos atos, exatamente porque golpe é golpe, seja
em que tempo for.
Leia mais em:
https://guiadoestudante.abril.com.br/estudo/5-filmes-para-voce-estudar-a-guerra-fria/
https://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/jango-e-o-comunismo-1.330072
https://blogdomariomagalhaes.blogosfera.uol.com.br/2014/03/30/por-que-a-data-do-golpe-e-1o-de-abril-de-1964-e-nao-31-de-marco-2/?cmpid=copiaecola
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