"Dinheiro de Cesar", quadro de Peter Paul Rubens (1600-1640) |
Algumas pessoas estranham a quantidade absurda de líderes religiosos ligados à política, como se isso fosse algo inédito nas relações de poder entre fé e Estado. Mesmo no campo da Esquerda encontramos alguns desavisados que fazem críticas ao atual governo, como se, só agora, o escancaramento da promiscuidade político-eclesiástica estivesse brotando. É claro que o quadro atual salta aos olhos, mas isso se dá como se fosse a ponta extrema da história, aliada à mídia digital que, ao contrário de outros tempos, escancara tudo, inclusive na forma da lei, através da benfazeja Lei de Acesso à Informação.
Em 2020 Ação Civil Pública pedia ofim de símbolos religios no serviço público |
Ao assumir uma vaga no Supremo Tribunal Federal, por exemplo, André Mendonça, ex-chefe da Advocacia Geral da União, cumpre o objetivo do presidente Jair Bolsonaro de colocar na Suprema Corte brasileira um ministro “terrivelmente evangélico”, algo que o chefe do executivo federal vinha ameaçando desde sua posse em 2018. E comocontestar a laicidade do Estado quando um dos três poderes da república tem o dever de resguardar a Constituição e mesmo assim ostenta uma cruz católica em plenário? A contestação dessa relação entre poderes e a religiosidade cristã, no entanto, é claramente definida e classificada pelo principal motivo da igreja existir. A emblemática passagem descrita no livro bíblico de Mateus capítulo 22 a partir do verso 15, na qual Jesus pergunta de quem é a face impressa numa moeda, dá o tom do que deveria ser um princípio básico cristão de distanciamento entre igreja e Estado. Porém, diferente do relato bíblico, o que temos são fatos históricos que dão conta de justificar ou minimamente nos dar a entender os motivos da aproximação entre os chamados “doutores da lei” e o império romano, à época do Jesus bíblico, o que perdura até nossos dias.
Constantino: se dizia cristão mas, adorava o Deus-Sol
O que vemos refletido nessa avides de mandatários ou candidatos a cargos políticos em se legitimar entre cristãos, tem relação direta com o expansionismo territorial romano, que tem no famoso Império Bizantino a contradição ideal para ilustrar esse texto. Constantino Augusto, imperador de origem sérvia, nascido no ano 272 d.C, carecia de constantes movimentações militares e políticas para se manter no poder. Com a ampla expansão do Império Romano inclusive para o Oriente, Constantino muda a Capital do Império para Bizâncio, que posteriormente seria denominada como Constantinopla e onde está Istambul, tida hoje como limite geográfico entre Oriente e Ocidente. Ainda que, com pouco mais de 25 anos de idade, sua história já estivesse repleta de vitórias em batalhas e na queda de braço entre líderes romanos mais antigos e experientes, Constantino se via na necessidade de se vincular à alguma deidade, ao longo de seus 40 anos e vida. Ele que, em busca do apoio de seu sogro, já apresentara como filho de Hércules, passando a adorar o Deus-Sol Invicto, padroeiro dos imperadores guerreiros. Porém, foi após uma guerra liderada por ele, ocorrida próximo a Roma, que Constantino se vê impulsionado a declarar devoção ao Deus cristão. Escritos redigidos por historiadores ligados a seu governo dão conta de que na noite anterior à batalha, o imperador manda pintar cruzes nos escudos dos soldados. A vitória na manhã seguinte foi estrondosa, sendo motivo de trovas e poemas em sua exaltação. Vale observar que nesse momento histórico há uma forte influência dos cristãos sobre Roma, a antiga Capital do Império, além da crescente pressão dos bárbaros sobre o império, em sua cidade-mãe. Um fato é irrefutável em relação a sua opção política pelo cristianismo é o chamado Edito de Milão (ano 213 d.C), que decreta o fim da perseguição e a liberdade de expressão por parte dos cristãos, porém determina que o Estado deveria ser religiosamente neutro. Outra contradição é o fato de que, ainda que a história o tenha colocado como o primeiro imperador cristão romano, existem moedas cunhadas próximo a data de sua morte, com sua imagem (cara), onde é possível ver o símbolo do Deus-Sol Invicto, o que deixas claro que, na verdade, se declarar cristão foi uma decisão política e não religiosa, haja vista o notório crescimento no número de devotos de Jesus da Galileia, tido como O Cristo.
Dia da Bíblia: como demarcar terrritório e influenciar pessoas
“sei que a bíblia é
A palavra de Deus
A regra de conduta e fé
A bíblia é”
Esse é um “corinho” cantado muitas e muitas vezes para crianças nas classes de educação religiosa ou escolas dominicais. A bem da verdade o curto refrão, muito direto, é inclusive um princípio pétreo que caracteriza uma igreja evangélica, em distinção de outras denominações tidas por muitos como cristãs. Entre os não cristãos mais antigos era comum apelidar os membros de igrejas protestantes de “os bíblias”, pela forma inseparável como era possível ver pessoas em direção aos cultos, diferente doque ocorria com católicos, por exemplo. A bíblia torna-se assim algum tipo de crachá de identificação entre pessoas que se viam de forma tão diferenciada diante da sociedade que usavam o jargão “não somos desse mundo”. Era bem possível ver um evangélico sem aqueles trajes formais. Porém, era impossível tanto aos passantes não cristãos quanto inaceitável aos demais “irmãos”, ver um crente sem bíblia, o maior símbolo de preservação de santidade individual. E isso, levandoem conta que cada denominação evangélica ou protestante tem interpretação própria sobre aspectos doutrinários. Ainda assim, usar ou expor publicamente a bíblia significa muito mais que uma opçã de vida. É demarcação clara de território.
Quando adolescente tive um vínculo com os “Embaixadores do Rei”, Organização batista trazida para o Brasil no ano de 1948 pelo pastor missionário estadunidense Willian Alvin Hatton. Ainda que esteja claro para pessoas mais atentas quanto ao compromisso dos protestantes estadunideses com o chamado “Destino Manifesto”, essa metodologia de expansionismo religioso não foi abertamente utilizada em nosso país, inicialmente. no início dos anos 80 em nenhum momento vi algum documento ou manual de formação que determinasse a preparação dos meninos para participação na vida política do país e sua consequente tomada de poder. A prática de incentivar os garotos ao aprofundamento quanto os ditames bíblicos, sobretudo no Novo Testamento e em especial atenção as cartas escritas por Paulo de Tarso (patrono da organização) aos cristãos romanos, gregos hebreus, me possibilitou, porém, um olhar incomum quanto ao cristianismo, ainda hoje. Esse olhar transcultural me ajudou muito a compreender as relações de poder contidas a partir do chamado “Jesus histórico”, no sentido de que se tornou fácil para mim entender que seria fácil evitar a crucificação de Jesus, caso os sacerdotes e doutores da lei judaica apoiassem a mínima resistência de seu povo ao poderoso império romano. Ao contrário, com a finalidade de manter seus privilégios clericais, foi feita uma parceria com o Império Romano visando exatamente manter o povo na condição de “ovelhas”, mansas e submissas, sempre atentas ao comando de seu pastor.
O período que guardo hoje com certo romantismo, já não cabe no discurso de quem optou em permanecer na vida eclesiástica, ainda que a lei que cria o dia da bíblia já comemore mais de duas décadas de existência. Com base na Lei nº 10335 de 19/12/2001, em pleno Estado brasileiro regido por Fernando Henrique Cardos, que se auto declarava neoliberal, o Dia da Bíblia parecia dar o tom da horizontalidade ideológica contida na hegemonia que a bíblia representa já há muitas décadas. Havia vista que mesmo a senadora Heloisa Helena, à época filiada ao PT e integrante de uma das alas mais radicais do partido fez, no dia da assembleia (não a de Deus) que pôs em votação e em seguida aprovação da citada lei, uma fala de apoio à criação do Dia da Bíblia, ainda que apresentando aspectos políticos que lhe são afeitos:
- O mais belo do evangelho são as passagens de rebeldia, de luta. Até Jesus Cristo invadiu o templo para enfrentar fariseus e sicofantas com chicote na mão. A comemoração pode servir para que possamos ler o livro sagrado não como história de subordinação aos grandes, mas de luta e libertação. Só assim homenagearemos o evangelho (Fonte: Agência Senado em 19/12/2001).
Senadora evangélica e do PT EM 2001, Helena defendeu o diada Bíblia
Quando trazemos à mente de todas as pessoas que a cultura traz consigo uma forte dimensão simbólica, é em exemplos desses acima que podemos nos debruçar. Mesmo com o relato bíblico da criação do mundo outorgando aos seres humanos o direito de dominar sobre tudo (veja, a bíblia não fala “domine sobre todos”), tem sido muito mais conveniente dizer que “essa cidade é de Deus”, tendo sempre um “homem de Deus” disposto a administrar esse legado divino. Lá se vão mais de um século e meio desde cristãos eram perseguido, criminalizados e mortos simplesmente por sua opção de fé e, o que vemos hoje, é a completa inversão de papeis. Bem antes de exercer algum tipo de preponderância por parte de algum segmento da sociedade ou mesmo antes de entrar de cabeça numa disputa de hegemonia econômica, política ou ideológica, cada grupo disputa antes a imposição ou preponderância de símbolos que os representa. Até mesmo os teólogos mais desprendidos de dogmas concordam que a bíblia não é um livro santo. No entanto, permitir que o livro mais lido do mundo em todos os tempos se torne símbolo de um segmento que disputa poder, é de fato estratégico para quem almeja dialogar com um público ávido por um jugo com ares de verdade, sobretudo quando tanta gente importante e midiática afirma e reafirma todos os dias que isso tudo que dizem e fazem, é a vontade de Deus.
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